terça-feira, 28 de abril de 2009

O Espantalho no Milharal em Chamas


Para ler ao som de:
Pink Floyd - Wish You Were Here


Estava imaginando como seria ter que aturar mais um dia, de muitos outros por quais eu ainda teria que passar. Talvez fosse por acaso que eu estivesse justo ali, bem naquela cama, naquela casa, naquele bairro, e assim sucessivamente. Mas na verdade estava ali só porque eu existia, e teoricamente, quem existe tem que estar em algum lugar. No meu caso era ali, sem surpresas e sem suspense.
Costumava levantar e tropeçar todo dia na porcaria do tapete que ficava bem do lado da minha cama. Mas sabe, gostava dele, e não queria tirá-lo dali. Naquele dia não foi diferente, tropecei no tapete, mas nem me importei, já estava acostumado.
Além disso, eu também tinha um cachorro, e nele eu depositava todas as minhas mágoas. Não que eu o insultasse, nem agredisse, nem nada. É que quando eu estava um pouco blues, ia brincar com ele. Ele se chamava Zero, não sei bem o motivo de eu tê-lo nomeado assim. Mas eu gosto da sonoridade: Z-e-r-o. Me agrada dizer essa palavra. Ele sempre mijava pela casa toda, e destruiu o meu sofá, mas não comprei outro. Ningúem vinha em casa, sendo assim não havia ninguém pra reparar no sofá. Como eu também não me importava, não comprei outro. O Zero me acordava todo dia com lambidas na cara, e naquele dia também me acordou assim.
Além do Zero, eu tinha uma TV, que ficava num suporte, pregado bem no vértice do teto com a parede. Eu tentava assistir, mas sempre desistia. Tinha exatamente setenta e quatro canais, e eram setenta e quatro porcarias passando todo dia naquela tela de quatorze polegadas. Pelo menos eu poderia escolher entre eles, sabe, seria bem pior se eu não pudesse escolher. Era uma bela mordomia que Deus tinha me dado: "Filho meu! Você tem o direito de escolher qual das setenta e quatro porcarias você vai assistir, não vou te obrigar a nada, use seu livre-arbítrio à vontade!". Bem que Ele podia me dar uma TV colorida, ou um carro, ou qualquer coisa assim. Mas não, só recebo essa droga de livre-arbítrio que não me serve pra absolutamente nada.
No café da manhã não costumava ter muito segredo, e naquele dia não foi diferente. Pão com manteiga na chapa e leite. Como sobremesa chupei um limão. Não sei por quê, dentre tantas frutas, fui escolher justo o limão como sobremesa de todos os dias. Acho que é porque ele é diferente. Sabe, ele causa todas essas caras feias, e problemas estomacais em todas as pessoas, e mesmo assim ninguém fica com raiva. Continuam fazendo limonada, ou qualquer coisa que tenha limão.
Depois do café, eu tinha um horrível ritual de mandar trezentos quilos de nicotina pra minha cabeça. Conseguia fumar um maço de cigarro num intervalo de uma hora. Mas é que na maioria das vezes fumava de dois em dois, enquanto eu assistia qualquer uma das setenta e quatro porcarias que passavam na TV. Todo mundo falava que isso iria me matar, o cigarro, mas eu não dava a mínima. Já estava morto, mesmo. Ninguém conhece uma pessoa que não aparece, que nunca viu. É impossível conhecer uma coisa que não aparece. Quem nunca aparece não existe, e quem não existe, por lógica, está morto. E eu era assim, existia, porém só existia pra mim, naquele quadrado com portas e janelas que as pessoas costumavam chamar de "lar", ou "casa", ou "doce lar", ou qualquer droga de nome que servem pra nomear uma mesma coisa.
Faziam já cinco semanas que eu não limpava nada. Tinha mijo pela casa toda (não meu, do Zero). O chão, de branco, já estava amarelo. As paredes tinham marcas de suor e dedos por toda parte, cheguei a encontrar até rastro de sangue, que foi de quando o bandido invadiu e eu enchi a cara dele de martelada (Ele não morreu nem nada, mas imagino que depois daquele dia ele lembrava de mim sempre quando se olhava no espelho). Tinha também aquele lençol gozado, que estava no canto da cozinha, que foi de quando eu levei Cristina pra lá, aquela prostituta barata. Já fazia umas três semanas, e nem estava mais cheirando, nem nada. Percebi que o tempo cura praticamente tudo, até os odores. Uma coisa fede até um certo ponto, e depois, de tão decomposta, não tem mais o que cheirar, e o fedor passa, assim, repentinamente. Pode demorar meses, mas uma hora o fedor passa. Uma hora tudo passa, essa é que a é a pura verdade.
Lembro quando levei Cristina pra lá, a primeira coisa que ouvi foi "Por acaso alguém morreu aqui e você esqueceu de tirar o cadáver?". Quase que a insultei, mas ela era bonita demais pra ser insultada. Não entendo o motivo dela ter virado prostituta, já que era tão bonita, e poderia ser modelo ou qualquer coisa assim. Gostaria de ter me encontrado com ela mais vezes, mas sabe, é contra as leis da natureza se apaixonar por uma prostituta. Não por ser prostituta, e sim por não poder reclamar de ter que compartilhar com milhões de outros gatos pingados a única coisa que pode ser inteiramente minha em uma mulher.
Como estava dizendo, pra passar o tempo, à tarde, costumava colocar na minha vitrola velha alguns de meus discos de vinil. Entre eles tinha um do Pink Floyd, o The Wall, e era esse o que eu mais gostava. Esse disco é uma ópera-rock, e conta uma história onde o personagem principal é o Pink, e sabe, adorava o Pink. Ele é o tipo de cara que não serve pra absolutamente nada, igualzinho a mim. A diferença é que ele é um rock star, e tem motivos pra se revoltar. E eu, bem, não era nada, e era assim sem motivo nenhum. Simplesmente era. Eu tinha sim a capacidade de ser alguma coisa, mas não o fazia. Sabia falar, amar, abraçar, e até voar. Podia fazer todas as coisas inúteis do mundo, mas a questão é que não tinha pra onde voar, nem a quem amar, nem nada. Então ficava ali, apodrecendo feito um espantalho num milharal em chamas. Sem poder fugir, morrendo queimado, parado de braços abertos feito um idiota (Odeio os espantalhos). Afundava meu mundo num copo de café, misturado com meu horrível ritual de nicotina e tabaco. Limitava minha vida a apenas isso.
Acontece que um dia eu fiquei de saco cheio, mais do que nos outros dias, e cansei de olhar pra droga daquela TV. Cansei do meu cachorro, cansei de ter que desviar dos mijos no chão, de ficar sozinho ouvindo Pink Floyd, de comer prostitutas, de olhar pras manchas de sangue na parede e pro meu corpo imundo sem banho à tanto tempo. O que deu foi que saí daquele quadrado com portas e janelas, e não havia nada lá fora. Todas as outras pessoas casas carros cachorros postes ruas calçadas árvores hidrantes e etc haviam simplesmente sumido. Olhei pra trás e vi minha casa no meio do branco, no meio do silêncio absoluto de uma vida como a minha. O Zero estava na porta, balançando o rabinho e latindo pra que eu voltasse, afinal, não havia nada pra mim lá fora. Meu lugar era ali dentro, isolado, vivendo minha vida sozinho. Eu havia me desacostumado com o mundo cruel, com as pessoas cruéis, com o barulho dos carros, com essa idiotice toda de emprego, escola, faculdade, e todos os complementos idiotas que formam uma sociedade mais idiota ainda.
Voltei pra casa e fiquei assim, feito um espantalho num milharal em chamas. O mundo não merecia minha atenção, e nem merecia nada, absolutamente nada de mim.

19 comentários:

  1. Ele sabia que já estava morto. era um cadaver ambulante com um coração pulsante no peito!

    MUIITO PERFEITO!

    amei! ;*
    te linkei tbm, okay?!

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  2. Vc escreve bem prá caramba ! Parabéns ! Prendeu a minha atenção até o final, só que eu imaginava uma grande revirada na estória, e fiquei decepcionada dele voltar à mesma vidinha de sempre ! rs
    Beijos !!

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  3. É, as vezes por mais que você canse e queira fazer diferente, algo sempre te prende aos costumes, às coisas que você se submete todos os dias, só nós mesmos somos capazes de nos dar e nos entregar, nada é capaz de nos forçar a isso, só nós mesmos.
    Amei o texto, outra vez nada conseguiu desviar minha atenção.

    "O mundo não merecia minha atenção, e nem merecia nada, absolutamente nada de mim." Concordo plenamente.

    Grande abraço.

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  4. Meu amigo, que belissimo texto.

    Você é um profissional.

    Está esperando o quê?

    Bola pra frente já, amigão.

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  5. As coisas tomam proporções absurdas quando a gente some.
    Fodão cara!

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  6. Muito bom texto, rapaz...bom mesmo.

    *Zero é um nome legal de cachorro.

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  7. Adorei Vallim.

    E zero é realmente um bom nome.
    e a questão do livre arbitro, meu, disse tudo.
    haha :)
    pra que essa porra?!

    talvez exista algo pra se fazer com ele, mas eu ainda não sei o que.
    Mas tudo bem, suave e de boa sempre.
    hehe : )

    sorte, paaaZ!

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  8. Hey, foi bom conhecer o Zero em tempos de Marley.

    Teu personagem tava cansado da vida (se dizia morto) então passava os dias de um modo, até o ponto em que cansou do modo como vivia e tentou voltar para a vida.. interessante.
    Gostei do conto fantástico, se posso chamá-lo assim Oo

    Obrigado pela visita ao meu blog.


    www.thiagogaru.blogspot.com

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  9. muito bom isso chuchu!!poxa bom mermo..

    beijO chuchu

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  10. O personagem do conto me lembrou muito os relatos de Holden Caulfield, do livro O Apanhador no Campo de Centeio. E o nome do cachorro me lembrou da banda Smashing Pumpkins. E a prostituta me recordou Tristessa, de Kerouac. Já o trecho "percebi que o tempo cura praticamente tudo, até os odores" não me lembrou nenhuma referência pop, apenas imprimiu a genialidade do seu texto.
    Parabéns.

    Hasta más.

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  11. Tão real que causa agonia...a sujeira...o cheiro da casa...o lençol...a urina do Zero (ah..adorei! Zero...) rsrs

    Às vezes tenho inveja de quem tem um motivo pra se revoltar...e tbm queria saber pra que serve o livre-arbítrio...se as escolhas parecem todas iguais...Talvez sirva para que vc nao tenha a quem culpar...

    Abraço.

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  12. Quantas vezes somos esse “Espantalho no Milharal em Chamas” j estamos mortos a muito tempo e não sabemos, tudo se torna uma besteira, o amor passa e não vemos... belíssimo o post, parabéns caro Lucas. E olha gostei dessa vez, você deu mais valo ao cachorro o zero kkkk!!!!

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  13. Ah, querido amigo, vc é mto bom nas histórias!

    Adorei o texto!

    Bjos, bom feriado!

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  14. Ótimo.. é impressionante como alguém pode se acomodar em situações que para a maioria, seria impossivel.
    Eu adorei, mesmo!
    Parabéns! :)

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  15. Pensei que no final ele fosse se suicidar ! Criou um suspense !!!!!

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  16. Caraca, esse texto é genial.

    Além de ter gostado por estar super bem escrito, eleme faz lembrar o personagem do meu texto "Hora de mudar, ou não"... as marcas do conformismo incorfomado são ótimas.

    Parabéns.

    Aliás... add o seu blog na parte dos recomendados lá no meu :D

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  17. como vc me impressiona!
    (ps.: da próxima vez escolha ,por favor, uma música mais longa! eu leio devagar, cortou todo o clima quando a música acabou! hehe --')

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  18. Como com estas palavras simples, consegues prender as pessoas a teus textox, dá vontade mesmo de ler, e ler e de nunca mais parar, de entrar em tua históriae viver, viver muito intensamente.
    E...
    Perfeito, até diria mais, MAIS QUE PERFEITO!

    Beijo_O

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