terça-feira, 26 de maio de 2009

Vagas Memórias de Meninos e Meninas


...Foi nesses dias, de Domingo de tarde, que nem chovem e nem fazem sol, nesses Domingos, que aconteceu...

I

Aqueles dois quartos vazios eram antes ocupados um por um homem, e outro por uma mulher, que naquele tempo não eram de fato homem e nem mulher; eram ainda menino e menina. Ele cheira passado, o quarto. Cheira um tempo que já se foi, e às vezes eu passo em frente à porta de entrada e não olho pro seu interior, talvez por já não me recordar absolutamente nada. E ainda se alguma vez o fizer, serão lembranças de coisas velhas, bem velhas, empoeiradas, que não têm mais utilidade nenhuma em minha vida e nem na vida de ninguém. Não me lembro de muita coisa, mas sei - ou penso talvez ter certeza - que lá dormiam um menino e uma menina.
Do lado da velha televisão quebrada da sala, tem algumas fotografias deles, do menino e da menina. As fotos, de tão velhas, já não conseguem mais fazer o que elas foram feitas pra fazer – Retratar algum momento distante, passado, através de uma pose ou um sorriso de alguém, o alguém que está estampado no papel, imóvel, olhando fixamente pra lente da máquina fotográfica, eternamente, eternamente -, e não mais me recordam o menino e a menina. O papel já está ficando com rachaduras e já está quase preto de tão amarelo. Esses antigos retratos me dão a estranha impressão de que naquele tempo tudo era amarelo, inclusive aqueles dois rostos em pose, do menino e da menina. Uma pequena mancha surgiu no canto inferior esquerdo, e depois a mancha amarela cobriu os pés do menino, e andando como um animal rastejante, depois de uns anos, a mancha já estava uniforme no papel, e os dois corpos - do menino e da menina -, pareciam agora vultos, vultos amarelos por entre uma fumaça amarela, por entre uma mancha. Os rostos estão quase indefinidos, e se não fosse pelo cabelo longo dela e pelo cabelo curto dele, eu não saberia dizer quem é quem. De qualquer forma, é por isso que já não passo horas olhando-as, as antigas fotografias, uma por uma. Elas estão velhas, velhas. De recordações só tenho o que fica na cabeça, e são coisas vagas. Não lembro mais da feição, nem de como eram os cabelos, nem de quase nada. Lembro que eram meninos e meninas, e que eu batia fotografias deles. Muitas fotografias.

Houve um tempo - antes das manchas no papel e antes do amarelo em todas as fotos - em que eu espalhava centenas de fotografias sobre minha cama e ficava jogado por entre todas elas, como se elas fossem água e eu estivesse nadando. Olhava uma por uma e tentava lembrar de como eu era feliz naquele tempo que a fotografia retratava. Nunca conseguia lembrar claramente, mas sabia que eu era feliz naquele tempo retratado. Só percebia o quanto eu era feliz depois que o tempo de fato passava, e é isso que sempre acontece. Só percebo o quanto era bom depois que passa. Mas tudo cresce, e esses meninos e meninas se vão. As crianças se vão e se transformam milagrosamente e tragicamente em homens e mulheres, todas elas. Não só essas minhas antigas crianças, mas todos os outros meninos e meninas. Se vão e viram homens e mulheres que geram outros meninos e meninas, e assim a roda vai girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando...

Em frente à TV e às fotografias amarelas, tem um sofá marrom claro, de couro descascado, e é onde eu passo boa parte do dia, talvez lendo o jornal, ouvindo o pequeno rádio de pilha que eu carrego comigo o tempo todo, ou ainda fico só sentado, com a cabeça dela em meu colo, a cabeça grisalha e de pele enrugada que ela tem. Ela também já está com um bom tempo vivido, e nada mais é como era antes. Não me importo. Ela era bonita, antes. Ainda é bonita, mas é bonita de outro jeito agora. Nada mais é tão nítido em minha cabeça, mas lembro vagamente de seus longos cabelos negros, e a pele nem morena e nem branca que ela tinha. Talvez fosse de uma cor exata que a pele deve ter pra ser bonita. Os seios eram outra coisa desse jeito, no ponto certo, como se fosse alguma fruta madura em que eu pudesse pegar e me lambuzar todo sem medo de nada. As pernas talvez fossem mais brancas, um pouco diferente do resto do corpo, não tão diferentes, e eram assim por nunca terem sido expostas ao sol, pelo menos não muitas vezes. Na coxa havia diversos pelos pequenos, quase invisíveis, loiros, que se arrepiavam todos quando suas pernas eram acariciadas ou lambidas. Era bom, era bom. De qualquer forma, hoje não estão mais tão maduros assim, os peitos. Mas não me importo. Ainda são frutas maduras pra mim, e eu sei que por trás desses cabelos grisalhos, os antigos cabelos morenos ainda balançam com o vento e brilham expostos ao sol. Brilham. Brilham. Por trás desses peitos já gastos, o coração implorando por descanso, e a perna dos pelos não mais tão invisíveis, por trás de tudo isso ainda existe aquela fruta madura e aquele coração que disparava quando transávamos em pleno domingo à tarde. Tudo está bem ali onde estava. Só está velho, gasto e cansado agora. Mas está lá. No mesmo lugar de sempre.
Havia também alguns domingos em que nós costumávamos deitar na grama do parque, há muito tempo atrás - quando ainda tínhamos paciência pra essas coisas -, e olhávamos os velhinhos. “Você ainda vai me trazer no parque e deitar comigo na grama quando nós estivermos velhinhos velhinhos velhinhos?”, ela perguntava, não com essas palavras, mas eram palavras assim. Eu fazia que sim e nos abraçávamos, pensávamos em como seriam nossos filhos, e em como seria nossa casa e todas essas coisas que os casais costumam pensar. Num dia desses, de parque, comprei pra ela uma rosa, e em três dias a rosa murchou e ficou toda preta, soltando líquidos esverdeados por entre as pétalas mortas. Ela me perguntou como iríamos cuidar de filhos se mal conseguíamos cuidar de uma rosa. Falei que das rosas ninguém sabe cuidar, e isso começa pelo ato de apanhá-las de onde elas devem viver naturalmente e necessariamente, junto com todas as outras rosas, pra que não morram depois de três dias em uma estante de um quarto qualquer, solitárias, solitárias, solitárias. Cuidar de rosas é na verdade nunca apanhá-las. Nunca.
Hoje já não a presenteio com flores, a graça disso acabou, e eu e ela estamos cansados de ter que, toda vez, depois de três dias, recolher os restos mortais da flor de cima da estante do quarto.
De qualquer forma, eles já se foram, o menino e a menina. Já faz um tempo que se foram, que cresceram, e no começo era insuportável, quase impossível viver nessa solidão toda, embora não fosse ainda uma solidão por completo. Era solidão ao lado dela, e eles já vieram.

II

De vez em quando eu acordo cedo pra ir comprar pão na padaria aqui do bairro, na rua de trás. Vivo dessa taxa que eles dão pra quem fica velho. Taxa que o governo dá, seja lá o que isso for, governo. O que importa é que eu ganho todo fim de mês. Eu e ela ganhamos, e é o que nos ajudou a comprar o sofá, a TV, a cama, a máquina de fotografia – hoje inútil – e várias outras coisas que não são tão necessárias assim pra nossa sobrevivência.
Já não tenho amigos. Todos eles se foram ou foram sumindo conforme o tempo foi passando, e isso é uma coisa natural. Amigos irem embora, não pra morte, mas pra algum outro lugar, é uma coisa natural. Cada um segue a vida, ou o que eles chamam de vida, embora eu também não saiba se posso chamar a minha disso. O que eu quero dizer é que eles se vão, assim como tudo se vai, e no fim só nos resta essa coisa que eu costumo chamar de amor, mesmo eu não gostando desse nome, pois no fundo no fundo todos já sabem que hoje em dia usam esse nome em vão, amor. Antes não. Antes era sério, mas hoje não. É em vão, é normal, é natural.
Os Domingos de tarde mudaram. Esses domingos de tarde, aqueles mesmos Domingos em quais eu costumava transar ou deitar na grama do parque, esses domingos de tarde mudaram. Não tenho mais aventuras e nem tenho nada de interessante nesses Domigos, mas talvez seja por isso que eles são meus melhores dias. Tenho aquela paz, aquele clima de Domingo, clima que eu não sei explicar, mas mesmo que eu dormisse quarenta anos e acordasse num Domingo eu saberia que era Domingo, sem calendário e sem nada. Aquele clima. Clima bom. Gosto mais dos que não tem sol, e nem lua. A lua é boa de noite, mas de noite eu durmo, e não a vejo com muita frequência. Então gosto dos dias cinzas, dos que não são nem frio nem quente, nem claro nem escuro. Domingos de tarde, desses que nem chovem e nem fazem sol. Foi nesses dias, de Domingo de tarde, que nem chovem e nem fazem sol, nesses Domingos, que aconteceu.

III

Eu estava deitado no sofá, com os pés num braço do sofá e a cabeça no outro braço. Estava lendo o jornal, e ouvi de longe.

Barulho de campainha, passos em direção à porta, fechadura gira, porta abre.

“Ah, se não são vocês! Está tudo bem? Entra, entra!” Ela disse, minha velha. Houve algumas risadas e uns abraços, por parte deles, do menino e da menina. Ouvi alguns risos de criança, mas talvez fosse meu cérebro tendo alguma alucinação, o que estava se tornando comum. No dia anterior tinha visto - pensado ver - um gato amarelo pulando em minha cama e dizendo “Você vai morrer, você vai morrer, você vai morrer...” infinitamente. Infinitamente. Infinitamente. Mas não dei importância. Conforme fui chegando perto ele foi se desfazendo feito areia de praia e eu deitei e dormi.

Uma voz diferente, masculina, grave, em minhas costas.

- Pai, tá dormindo?

Era o Márcio. Menino que já não era menino. Meu menino, meu antigo menino. Ele já estava grande, alto, maior que eu. Tinha alguns pelos grossos saindo de seu rosto, e eu pensei comigo “Ele está com mais barba que eu”, e vi que a dele era preta, e a minha branca. A memória é vaga, mas talvez houvesse tido um abraço forte naquele momento de reencontro, um beijo no rosto, um “Mas como você está diferente”, e todas essas coisas assim.
Depois ouvi uma voz por trás. Voz doce, feminina. Não era minha velha, e deduzi que fosse a menina. Minha menina, minha antiga menina.

- Oi pai. Sou eu, Alice.

Alice. Alice. Alice. Era minha menina. Pequena antiga Alice. Ela tinha seios agora. Seios. Mulheres têm seios, mas ela era ainda minha menina. Mulher pro mundo, menina pra mim. Complicado de explicar, mas eu entendo facilmente. Era parecida com a mãe. Bem parecida. Todos os detalhes coincidiam, e eu fiquei feliz duas vezes. Uma por ver a menina, e outra por rever minha velha, como na época em que ela não era velha. Duas vezes. Feliz.
Mas o que mais me assustou, ou deixou mais feliz ainda, não sei bem. Foi o menino e a menina de verdade. Não o meu menino e menina. Menino e menina deles, do menino e da menina. Pode ser que esteja complicado de entender, mas eram os filhos dos meus filhos; meus netos. Menino era da menina. Menina era do menino. Eles eram bem pequenos, baixinhos, características típicas da minha velha, incrivelmente todos se pareciam com ela. Cabelos negros, peles brancas, e tudo mais. Me levantei do sofá pra ver os pequenos, e me deram abraços tímidos. Foram correr pela casa toda. Talvez o menino tenha corrido de braços abertos, imitando um avião e fazendo “vrum vrum” com a boca, numa tentativa de fazer o som de um aeroplano. Não sei ao certo se sonhei ou se de fato aconteceu. De qualquer forma, a menina era mais tímida. Não tão tímida, só um pouco, no começo. Depois a timidez passou, e ela até me ajudou a fazer panquecas, com a mãozinha toda melecada de mel e açúcar e essas coisas assim. Também lemos um livro, um pouco mais tarde. Era infantil, e eu lia alto pra que os dois ouvissem. Sentaram os dois em meu colo, cada um em uma perna, no sofá descascado. Foi bom.
Passamos o dia assim, Domingo de tarde. Ele estava cinza, sem sol e sem lua, nem frio e nem calor. Perfeito do jeito que os Domingos devem ser.
Faz algum tempo que eles não vêm de novo, os meninos e as meninas. Mas talvez eles tenham vindo, e eu tenha esquecido. Ando esquecendo muitas coisas ultimamente. Uma vez ouvi que eu tinha uma tal coisa na cabeça, Alzheimer. Nem imagino o que isso seja, mas sei que eu levo como uma coisa boa. Há tempos, agora, não vejo meu menino e minha menina, nem o menino e a menina deles. Aqueles dois quartos vazios agora já têm duas camas. Uma cama em cada um, uma rosa e uma azul, que é pras crianças, quando elas quiserem dormir por aqui. Talvez eles já tenham dormido algumas vezes, mas não me lembro. Talvez eu tenha sonhado, ou foi só coisa de minha cabeça. Sei que estou velho, farto. Essas coisas acontecem com velhos, e o lado bom disso tudo é que eu me surpreendo todas as vezes, sem exceção de nenhuma. Vejo os meninos e as meninas e os vejo como se fosse a primeira vez. Como se eu lesse o mesmo livro milhares de vezes e me impressionasse com o final em todas elas, de uma forma como se eu nunca tivesse lido antes. E é assim, cada vez que eles se vão. Cada vez sinto que se passa uma eternidade pra que eles venham de novo, e eu não me importo. A velha fica dizendo que todo fim de semana eles vêm, mas eu não acredito. Talvez ela esteja alucinada, talvez seja coisa da cabeça dela. Mas eu não. Eu sei do menino e da menina. Eu sei. Ela não. Eu sei.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Incondicional


Para ler ao som de:
Radiohead - Videotape

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...Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!”...

Eu já não me importava mais se a escova no banheiro estivesse repleta de cabelos seus e eu tivesse que tirar fio por fio antes de pentear os meus. As roupas sujas espalhadas pelo chão não mais incomodavam, e eu desviava peça por peça até chegar na pia e olhar no espelho sujo e manchado aquela minha cara coberta de máscara. Tinha já trocado meu perfume, minha pasta de dente, minhas roupas, não mais usava meias vermelhas e nem comprava camisas listradas, muito menos xadrez. Já não sabia se eu era eu ou você, ou outro alguém que eu nunca de fato conheci. Era simples; Você falava, estava falado, e pronto.
Você já não me entendia e exigia que eu te entendesse e mergulhasse de ponta-cabeça por entre sua vida e seus costumes e eu não estava muito pra coisas alegres naqueles tempos. Na verdade era aquela alegria alheia que infestava a tua casa, a cidade, as lojas, a padaria, você, teu pai, tua mãe, tuas irmãs. Aquela alegria alheia é que era insuportável, pelo menos naqueles tempos.
Lembro quando a gente brincava de ser triste. Você fingia que chorava e eu chegava devagar, tirava suas roupas lentamente e lambia tua cara e teus peitos e você gostava e a falsa tristeza passava. A gente contava um pro outro histórias e histórias e daí pra frente a tristeza virava alegria, mas era alegria de verdade, vindo de uma falsa tristeza. Era estranho, e eu gostava, mas depois de um tempo você não queria brincar mais. Não mais. Não brincava porque agora a tristeza não era mais de mentira, e quando a tristeza não é de mentira não dá pra gente brincar e nem fingir que está feliz. Fica por isso mesmo, na tristeza.
No começo era bom, sim. Era sempre bom quando a gente não se amava tanto. Eu te amava só um pouco, não muito. Gostava mais do meu cigarro, do meu diário, menos de você. Era uma coisa saudável, "Eu te amo, mas não tanto", "Eu também te amo, mas não tanto" e agora tudo mudou. Agora só conseguia dizer "Te amo eternamente e incondicionalmente por todo o resto de minha vida e trocaria qualquer coisa por você até mesmo eu mesmo e eu nem me importaria se eu não existisse pra que você pudesse existir". E você respondia assim desse outro jeito "Eu te amo incondicionalmente mas ainda resta uma condição, a de que você me aceite e aceite junto comigo todos os meus compromissos e tudo que eu prezo pra minha vida". E o incondicional passava a ser condicional e eu já não entendia mais nada e preferia acreditar que eu era o grande amor de sua vida e pronto. Mesmo sabendo que você tinha outras coisas e que amava essas outras coisas também além de me amar. Ninguém me avisou que junto com você viria tudo isso, e veio.
Veio mas meu problema era outro. Problema era eu te tornar um objeto, colocar meus braços em sua volta e te abraçar forte, pra que você nunca mais saísse. Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!” bem em meu rosto e eu era obrigado a te soltar. Eu pensava incessantemente “não sou canalha, não sou canalha, não sou canalha”. Não era canalha. Não. Parecia ódio, mas era só amor. Quis um dia te prender em minha cama pra sempre e te dar comida e banho e lamber tua cara e teu peito de novo e criar histórias e histórias e histórias, mas não deu.
Te queria como uma fruta. Fruta sensual e venenosa que você era. Me fazia morder desesperadamente cada pedaço e tomar cada gota do líquido que escorria pela sua polpa. Do teu gosto amargo eu só sentia o doce, e da tua textura áspera eu só sentia a lisa. Lisa como água, como mel, como qualquer coisa assim. Me iludia. Seu suco me envenenava pra depois me fazer sofrer, enquanto meu corpo desesperadamente ia tentando expulsar o veneno através de lágrimas ou de gritos, sempre à noite. E quando eu finalmente conseguia me curar e me sentir livre de você, era aí que você aparecia de novo e eu freneticamente mordia o teu corpo de fruta venenosa de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de nov, e de no, e de n, e de, e d, e...

Agora eu fico aqui, sentado em tua cama, chorando de verdade e fingindo estar chorando de mentira e triste de verdade e fingindo estar triste de mentira. Só assim você vem me alimentar e me banhar e lamber minha cara e meu peito e dizer que eu estou triste de verdade e que preciso brincar brincar brincar de ser feliz e que sou tua criança e você é minha criança e assim a gente cria histórias e histórias e eu já nem me importo mais. Sei que você também está triste de verdade e finge estar triste de mentira pra ter pretexto pra brincar de ser qualquer coisa menos de ser triste, e eu te entendo. Isso é confuso mas eu entendo. Te entendo. Antes me importava e não entendia, mas agora nem me importo mais, e entendo. Você sempre vem. Você sempre vem. E a gente já nem sabe se é feliz ou triste de fato. A gente nunca sabe, nunca soube.

Melhor é ficar na dúvida eternamente, incondicionalmente. Incondicional.


quinta-feira, 14 de maio de 2009

A Imóvel Ausência


Ela

...sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados...

Ela sabia falar bem, embora fosse criança, e tinha bons gostos pras coisas, praticamente pra tudo. A gente costumava passar na loja de roupas, e eu só sentava e esperava enquanto ela ia pegando, com suas mãos pequenas e delicadas, algumas camisas, calças, talvez uma gravata, meias, e eu a deixava escolher à vontade; Nunca me arrependi. Seus gostos eram realmente bons, e eu sempre a deixei à vontade.
Quando chegava em casa, no finalzinho da tarde, depois de me contar como havia sido seu dia e de como tinha se relacionado com os pequenos amigos de classe e com as professoras, sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados. Os desenhos eram praticamente os mesmos: Três bonecos coloridos de mãos dadas.
Em cima do boneco menor de todos – que ficava no meio dos outros dois – ela escrevia eu; no da direita com cabelos grandes escrevia mãe; e finalmente, no da esquerda, que carregava na mão de palito uma mala, ela escrevia pai. Atrás, em cima dos três bonecos, dava pra ver um círculo todo pintado de amarelo, com alguns tracinhos em volta retratando os raios do sol. Tinha também uma casa, daquelas simples – quadrada com telhado triangular -, e eu nunca entendia qual era o motivo das crianças terem essa mania de desenhos coloridos retratando a família. Ainda mais no caso dela, que não tinha mãe.

***
A mãe, meu velho amor:

Ela morreu no parto, meu velho amor. Como lembrança eu só tinha a minha pequena, que ela havia deixado pra mim, e era toda minha agora. A conheci quando eu tinha treze anos, e até o parto de final triste nunca havíamos nos separado.
Era bonita: Cabelos negros e lisos, olhos castanhos, dedos de pontas finas e pele branca. Seguimos à risca a doutrina que os padres costumam dizer nas cerimônias de casamento, até que a morte nos separe. E separou.

***

Às vezes ela brincava com meus cabelos enquanto eu assistia TV, minha pequena, e além disso, antes de dormir, a gente inventava histórias sem fim, pra poder continuar no outro dia como se fosse uma vida paralela ou ainda mais que isso: um reflexo de nossas próprias vidas. Uma vez ela me disse que nunca ia me abandonar, e que mesmo quando eu ficasse velho e fraco, nunca deixaria de brincar com meus cabelos.

Eu

...num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado...

Minha cama era grande, e fato é que nela só dormia uma pessoa, e essa pessoa era eu mesmo, embora nem sempre tenha sido assim.
Era evidente que um dia a casa havia sido pequena, sim. Aqueles dois quartos, a sala grande e a cozinha toda decorada com azulejos de flores azuis - tudo escolhido por ela. Aquilo havia sido pequeno um dia, pequeno pra ela e pra mim. Mas agora eu estava sozinho, e a casa tinha ficado terrivelmente grande.
Também já fazia um tempo que eu tinha parado de programar o despertador. Antes eu me importava com o tempo, mas agora tanto fazia acordar quatro horas da tarde quanto duas da madrugada, eu realmente não me importava. Joguei no lixo o despertador; percebi que ele não tinha mais utilidade. Tomando isso como rumo, tirei também o relógio amarelo que ficava pendurado na parede da cozinha, o vermelho que ficava na sala, e bloqueei os canais de TV que falavam as horas. Foram todos pro lixo, assim como deveria ser.
O que eu quero dizer é que num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado. Era a sua ausência. Nada mais me importava depois desse dia. Desde que ela tinha se mudado eu não conseguia me concentrar, muito menos limpar a casa e escolher roupas. Não comprava roupas há mais de três anos, não por falta de dinheiro, e sim pela sua ausência.
Tentei novos amores, mas eu já estava velho, e é difícil arrumar amor quando a gente fica velho. Não consigo entender por que é que o mundo é tão artificial, quase de plástico, todos vivendo na aparência, e só. Mas não me importava, queria mesmo era a minha pequena de volta, e também meu velho amor. Mas era impossível. A minha pequena tinha crescido, e o velho amor a vida tirou de mim.
Fumava mil cigarros por dia, e não havia álcool que dava conta de minha tristeza, desespero e solidão. Ela havia se mudado. Tomaram-na de mim.

Ele


...O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura...

Chegou sem avisar. Entrou pela porta da frente, ele e ela de mãos dadas, com um sorriso inconfundível no rosto. Me cumprimentou, sentou no sofá e ficou em silêncio. Sentei na poltrona e fiquei em silêncio também, olhando os dois e me preparando psicologicamente pra uma coisa que eu não sabia o quê, na verdade sabia, mas não queria saber.

O clima era intenso e minhas pernas se cruzavam e descruzavam de um lado para o outro e eu pensava em colocar um disco de música e desisti da idéia e depois pensei em servi-lo um café mas ele não merecia um café porque ele estava tomando minha filha de mim e eu não podia fazer nada e queria o matar por isso. Ele me olhava esperando alguma coisa de mim e eu não tinha absolutamente nada pra dizer e minha vontade era de insultá-lo e expulsá-lo da minha casa e prender minha menina de dezenove anos no quarto amarrada pra ela nunca poder fugir de mim. Aquele seu jeito de garoto inoscente me irritava e eu sabia que hora ou outra ele colocaria o sexo dele no sexo dela e trocariam fluídos e amores e eu ia ficar pra trás nessa história toda. Cuidei e tratei da minha pequena e a vi crescer, alimentei, moldei feito uma flor ou um quadro que eu achava a coisa mais linda do mundo, mas agora ela não estava mais em minhas mãos e sim nas mãos de um outro homem que não entendia nada de amor e assim como eu fui ele era também instintivamente dependente do ato sexual e da troca de fluídos intensos. E era com a minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

- Me fale um pouco sobre você - falei finalmente, com uma voz calma, tentando esconder a raiva e o desespero que estavam gritando furiosamente dentro de mim.

Era um rapaz novo, por volta dos dezenove ou vinte anos. Tinha um emprego razoável e parecia-me responsável. Mas isso não bastava, eu não queria nem um milionário tirando minha filha de mim. Ficamos trocando informações desnecessárias até que o que eu mais temia aconteceu. Apertaram as mãos ainda mais fortemente, e com aquele olhar de paixão e falso amor ele me disse:

- Vim até aqui pra pedir a mão de sua filha em casamento.

O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura e depois me recuperei e senti minha vista ficando branca e não sentia mais as pontas dos dedos. A respiração estava eufórica e eu sentia o ar passar por minha garganta feito pontas de faca rasgando do início ao fim tudo que eu tinha por dentro. Lembrei da minha pequena e de como ela me disse um dia que nunca deixaria de brincar com meus cabelos mesmo quando eu ficasse velho, e agora eu já estava velho e quase não tinha mais cabelos. A minha pequena desenhava a família colorida no papel e eu lembrava cor por cor e agora havia surgido mais um boneco invasor no papel amassado. Ninguém o convidou. A pequena cresceu e agora estava quase uma mulher e eu não podia fazer mais nada e ela não estava mais tão carinhosa assim e não escolhia mais minhas roupas nem brincava mais com meus cabelos, mas ainda era minha pequena. Ninguém tinha o direito de tirá-la de mim. Ninguém. Minha menina. Só minha. Só.

O Fim

Eles foram embora pela porta da frente e nunca mais os vi. Pra mim só sobrou essa casa terrivelmente grande e essa ausência que fica imóvel bem do meu lado. A ausência é da minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

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domingo, 10 de maio de 2009

Vermelho


Para ler ao som de:
Radiohead - Pyramid Song


Fase I

Era comum, embora desagradável, escutar ao longo do dia sua voz ecoando por toda a casa. Não que ele tivesse culpa - que na verdade ninguém tem -, mas seu jeito era assim, e eu não podia fazer muita coisa pra mudar. Aliás, não podia fazer nada.
A rotina era exata; Chegava do trabalho, entrava pela porta da frente, passava pela cozinha (onde minha mãe geralmente ficava), cumprimentava minha mãe com um beijo na boca, depois vinha pra sala de estar (onde eu geralmente ficava) e me cumprimentava com um beijo na testa. Depois disso ele tomava seu banho, e assistia TV pelo resto do dia.
Ele sabia ser gentil às vezes, o que não quer dizer que ele gostasse de ser, mas de qualquer forma fingia muito bem no começo.

Fase II

Começou a piorar, mas nada que fosse insuportável. A rotina, embora constante, já não era mais a mesma de antes; Entrava pela porta da frente, cumprimentava minha mãe e a mim com um simples aceno de mão, ou alguma frase do tipo “
oi-tudo-bem”, mal falada. Eu não conseguia entender qual havia sido o motivo da mudança, mas depois de um tempo não sentia mais falta dos beijos na testa nem de nada. Eu já estava mais velho, embora não muito, e quando a gente vai ficando mais velho aprende a lidar com diversas situações, se acostuma facilmente. O que eu quero dizer é que nesse tempo ele era uma pessoa fria, mas não chegava a ser arrogante nem desagradável. Era apenas frio, e eu me acostumei.

Fase III

Comecei a sentir, finalmente, as conseqüências disso que eu nunca causei. Experimentei a sensação de ser rejeitado, talvez mal-tratado, ignorado, e qualquer coisa assim. De frio, havia agora passado pra arrogante, quase insuportável.
Entrava pela porta da frente, já de cabeça baixa e falando sozinho - talvez reclamando de alguma coisa que só ele sabia-. Ao invés de cumprimentar, ele preferia insultar. Lembro do primeiro dia de mudança de fase;
Sua-vaca-mal-lavada, foi o que ele disse, assim, sem mais nem menos, à minha mãe, logo quando entrou pela porta da frente. Simplesmente olhou pra minha mãe e disse isso. Ainda nesse dia, logo em seguida, caminhou em minha direção, olhou bem no fundo dos meus olhos, e começou o discurso: “Por que você não toma vergonha nessa tua cara e vai trabalhar, fazer alguma coisa de útil nessa tua vidinha, em? Acha que eu te criei pra ficar pintando quadros, rapaz? Você acha que essas tuas pinturas de bicha vão te trazer alguma coisa, em? E aquele seu diariozinho de merda? Eu sempre o leio, viu? E de todas aquelas porcarias escritas, nunca achei uma que prestasse, sabia? Seu vagabundo. Eu com tua idade já ganhava meu próprio dinheiro, seu escroto. Com tua idade eu comia tua mãe, aquela vadia que tá na cozinha agora, e foi quando eu a engravidei. Toma vergonha nessa tua cara, seu bichinha... ”.
Não sei. Lembro que ele me sentou no sofá à força, e enfiou um charuto na minha boca. Disse “
Trague”. Perguntei qual era o motivo, e recebi de novo a mesma ordem. Sem saber o que fazer, traguei, e foi a vez que mais tossi em minha vida inteira. Claro que não havia vivido muito tempo até então, pois tinha no máximo doze anos. “Me prova que você é homem. Não agüenta com um charutinho? Agora vai experimentar isso. Toma”, e colocou na minha frente um copo de cachaça. Coloquei tudo pra dentro, forçado, sofrendo, e quando fiz cara feia, ele me fez tomar tudo de novo. Embriaguei-me acidentalmente, e dormi ali mesmo, no chão da sala.

Fase IV

Agressões físicas, a mim e à minha mãe. Eram constantes, praticamente todos os dias, a não ser pelos dias que ele não voltava pra casa. Provavelmente passava as noites em algum bordel, ou o que quer que seja. Mas quando voltava, agredia a gente sem motivo nenhum, como se fosse um prazer ou um hobbie. Teve tempos em que ele me batia com uma vara de pescar, e também com chicotes de couro, que eu nem imagino onde ele havia arrumado.
Em minha mãe eram coisas mais pesadas, talvez pedaços de pau, pedras, ou mesmo chutes, socos, e coisas ainda mais criativas, dependendo de seu humor, ou da quantidade de cachaça, entorpecente, ou qualquer coisa que ele tivesse mandado pra cabeça.
Diversas vezes ouvi, “
Filho, não esquenta não, tá bem? Logo a gente sai dessa vida, só espera a mamãe ser promovida no trabalho, aí a gente sai daqui pra bem longe, viu? Não responde nada, não. Deixa assim, como está, dê a razão pra ele sempre, talvez assim um dia ele canse.”, ela dizia, minha mãe. Sempre a escutei com toda atenção, e por muito tempo a gente aguentou os socos e pontapés de meu pai.
A gente também via os pequenos rastros de sangue seco, que já havia infiltrado nas paredes e em uma boa parte do piso da cozinha. Ele nunca se cansou. Nunca. A quantidade de sangue seco só aumentava, aumentava, e aumentava a cada dia. Pensei na possibilidade de limpar tudo e deixar novamente as paredes e o piso brancos, assim como eram e assim como tinham que ser. Mas não. Se eu limpasse, no outro dia estaria do mesmo jeito, ou até pior, portanto a gente nunca limpava. Ficavam ali, aquelas manchas vermelhas em diversos formatos. Lembro que num canto tinha uma que parecia um elefante, o formato, e era a que eu mais gostava.

Fase V (Final)

Barulho de porta; ele havia chegado. Ficou um tempo parado em frente à entrada da cozinha, talvez uns quatro minutos, encarando minha mãe com os olhos vermelhos, talvez de algum álcool, raiva, não sei. Sua respiração estava ofegante, como se ele tivesse corrido trezentos quilômetros fugindo de uma tropa de exercito, sem parar. E foi quando eu a vi, a pistola. Era uma 38, daquelas antigas, mas era evidente que funcionava perfeitamente. Escutei o
cleque do gatilho, e logo em seguida cinco disparos, que foram bem no meio do rosto de minha mãe.
No delicado lugar onde um dia se encontravam os belos olhos verdes, a pele branca e os cabelos castanhos lisos, agora só se via um grande vermelho. Não houve gritos, nem gemidos, nem nada. Cinco disparos; corpo caído no chão; morte.
Nesse momento corri em direção à cozinha, e ele estava com os olhos ainda vermelhos, e a pistola na mão direita, já abaixada. Estava parado, imóvel, olhando aquele rosto desfigurado que um dia foi de sua menina. Me veio uma sensação de morte, aquele característico cheiro azedo que a gente costuma encontrar nos funerais e nos enterros. Eu obviamente sabia, ela estava morta.
Sem pensar, agarrei no pescoço de meu pai com a força de homem crescido que eu já tinha, e ele nem sequer reagiu. Derrubou a pistola no chão, e foi nesse momento que o senti desistindo de tudo. Fechou os olhos, bem devagar, ficou cada vez mais vermelho - não só os olhos, mas o rosto inteiro-, e eu não soltei seu pescoço em nenhum instante, até que já o havia matado. Ele caiu no chão, bem do lado do corpo de minha mãe. A posição coincidiu com a que eles costumavam ficar, antes de dormir, havia muitos anos atrás, quando eles eram estupidamente apaixonados, e quando eu era ainda uma criança. Mas agora, de todo o sono, tinha só morte. A criança cresceu, o sonho acabou, e terminamos assim.
Olhei pro chão da cozinha, e eram meu pai e minha mãe mortos. Como um breve e estúpido conformismo, preferi acreditar que tudo havia acabado para um bem maior; minha mãe havia parado de sofrer, e eu estava livre de toda tortura. Sobre meu pai, bem, eu nem me importei.

Sobre o fim da Vida e da Morte

O vermelho na cozinha era intenso, e não era o vermelho das antigas manchas de sangue seco, nem das maçãs e tomates que repousavam silenciosamente sobre a mesa. O vermelho era de sangue; puro sangue vivo. Escorreu lentamente por entre meus pés descalços, dançando feito uma cobra, e foi descendo aos poucos pelo pequeno ralo que havia ali no chão. Aquele sangue – a vida de minha mãe - escorria pelo ralo, como se nada estivesse acontecendo, e eu já sentia o cheiro de carniça e de morte inundando a casa do início ao fim. Por alguns instantes eu me perdi, fiquei imóvel diante da morte dos dois corpos que me deram a miserável vida que eu tinha, e por fim estavam indiferentes um ao outro, e indiferente também à minha presença. Sentei no chão, junto do sangue e dos corpos imóveis, debrucei-me sobre o peito encharcado e vermelho de minha mãe; Chorei.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Um Amor Inventado



- Aí, vadia, quanto que é?

- Hey garoto, que é isso? Quem você pensa que é, pra vir assim, sem mais nem menos, e falar comigo desse jeito?

- Calma, só perguntei. Quanto que é, em?

- Não me olhe com essa cara. Não é minha culpa que você cismou com minha bunda e quer colocar suas coisas nela. Eu vou te dar depois, mas por enquanto não, to afim é de zombar da tua cara, agora.

- Zombar da minha cara? E por que você faria isso?

- Quem são aqueles ali, alegres feito uns idiotas?

- Meus amigos...

- Ah, amigos... Sabe o que eles vão fazer com você? Quando você encher essa tua cara fofinha de vodka e tequila, vão te deixar no chão, babando e tremendo, e vão cada um pra suas casas, como se nada tivesse acontecido.

- Eles são meus amigos de verdade, não são desse tipo...

- Claro, você paga tudo pra eles. Quem não é teu amigo, playboy, me diz?

- Deixa pra lá... Tem um cigarro?

- O quê? Você fuma?

- De vez em quando.

- Tá bem, toma a porcaria do cigarro.

- (tosse)

- Tossindo? Há-há, tossindo!? Não precisa mostrar bonito pra mim se você nunca fumou antes. Eu vou dar pra você de qualquer jeito, garoto, mas espera, não agora. Por falar nisso, são noventa e seis reais.

- Noventa e seis reais!?

- Você acha caro? Acha que eu sou puta de rua, daquelas neguinhas que chupam pau de caminhoneiro? Há, boy, nada nunca foi caro pra você, esqueceu? De puta de rua não tenho nada.

- Eu só estav..

- E pra que você veio pra cá, afinal, em?

- É que eu nunc...

- É virgem, ah, sim, imaginei... E o que quer que eu faça por você?

- Agora?

- Não, não agora, playboy. Estou falando mais tarde, o que você quer que eu faça?

- Seria bom co...

- Tá bom, faço com a boca sim, mas só pra você, em garoto? Não vai sair por aí espalhando pra meio mundo que a “coroa vadia” pagou umazinha pra você, em?

- Eu não ia falar isso. Você é que não me deixa terminar de falar...

- Você é bonitinho, e além do mais é tão estúpido, tão criancinha, sabia?

- Você vai ficar aí falando, ou o quê?

- Tá, tá, vamos logo com isso. Agora para de falar, e me deixa entrar na porcaria do carro.

- Mas e os...

- Manda teus amiguinhos irem embora, não quero olhar pra cara deles.

- Mas...

- Espera até a gente chegar lá, aí você fala o que quiser, entendeu, boy? Agora, só dirige.

- Tá bem... Mas lá, onde?

- No motel. Você vai pagar motel pra gente.

- Vou?

- Vai.

- É porque eu reclamei do preço, que você tá assim, nervosa?

- Não estou nervosa. Já estou te dando um desconto, boy. Você quer me comer de graça, é?

- Eu n...

- Há, sim, todo mundo quer. Agora fecha essa boca.

(Já no motel)

- Ok, pode falar agora, playboy, e enquanto fala, já vai tirando essa roupinha de bicha que eu não tenho muito tempo.

- Mas calma, não é ass...

- Tá com vergonha, é? Eu tenho cara de quem tem o dia inteiro pra ficar aqui com você? Vai logo com essa roupa, garoto.

- Tá bom, tá bom... calma...

- Bonito aqui, esse lugar. Você é o primeiro que me traz aqui, sabia, boy?

- Mas eu não trouxe... foi voc...

- Você que vai pagar, então é você quem trouxe.

- Pode ser, então.

- Que é isso? Tá esperando o quê? Você acha que essa coisinha mole vai entrar em algum lugar?

- É que...

- Tá, já sei...Talvez se eu fizer isso melhore... está melhorando?

- S-si-sim...

- E isso?

- Melhor ainda...

(instantes depois)

- Curtiu, playboy?

- Sim, muito, mas agora tenho que ir embora... tá ficando tarde.

- Ir embora? Não, não, por favor, boy! Fica!

- Quê?

- Eu não cobro nada, mas fica, fica aqui comigo!

- Como assim, ficar aqui com você? Você tava toda mal-humorada, dizendo que tava sem tempo...

- Eu menti. Não aguento mais isso, boy... Estou cansada!

- Não aguenta mais o quê?

- Chega sempre algum cretino, come a minha bunda no fim do dia e vai embora como se nada tivesse acontecido... estou cansada disso.

- Mas você é uma puta, e as putas fazem isso, não fazem?

- Fazem, mas olha pra mim, playboy. Já estou nessa vida há muito tempo... longe de casa, sem amor, sem nada...

- Imagino...

- Fica aqui... a gente abre um vinho, acende essa porcaria de lareira, já que tá esse friozinho...

- Mas e amanhã?

- Amanhã você pode ir embora, se quiser... Mas agora passa a noite aqui comigo, a gente finge que se ama, e eu pago você amanhã, noventa e seis reais.

- Mas é eu que tenho que pagar, não é?

- Vem aqui, finge que me ama, que eu sou teu amor... Fala coisas bonitas pra mim, igual naqueles filmes idiotas... e eu pago pelo serviço.

- Serviço?

- As pessoas compram meu corpo, e hoje eu quero carinho, quero me sentir mulher, honrada... então eu o compro. Você faria isso por mim?

- Mas...

- Vem aqui, playboy. Entra aqui, debaixo dessa coberta comigo... a gente dorme abraçadinho, talvez eu te conte algumas histórias...

- Está bem...

- Isso! Assim, boy. Continua deitado, aqui, do meu lado... Te amo tanto, garoto.

- Te amo... é assim que você quer?

- Isso, agora pega na minha mão, faz carinho...

- Assim?

- Isso, playboy... Agora nos meus cabelos... Isso...

Fade Out

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segunda-feira, 4 de maio de 2009

O Quarto 74


Foi depois de ficar parado um bom tempo em frente à entrada principal, que resolvi entrar. Como qualquer outro hospital, aquele tinha um cheiro característico, que me lembrava um pouco o cheiro daqueles produtos de limpeza, e no meio desse cheiro era possível sentir algum outro que vinha da tristeza, ou do tédio, talvez do desespero das pessoas dali. Fui caminhando lentamente, analisando cada detalhe - As paredes brancas mal lavadas, as cadeiras de rodas com acentos de couro descascados, talvez couro podre, se é que, assim como a carne, o couro apodreça.
O silêncio alimentava o cheiro de desespero, e por entre esse silêncio eu ainda conseguia escutar uns leves ruídos, talvez de sapatos brancos de médicos caminhando à sala de espera para dar alguma má notícia à alguém, mas não tinha idéia de onde vinha, o ruído. Agora, uma enfermeira.

- Pois não, moço? - Ela disse, olhando pro outro lado, pensando em alguma outra coisa qualquer.

- Eu sou o Sérgio, liguei agora há pouco avisando. Sabe se ela já está aqui, minha irmã?

- Sei não. Olha, o quarto é no fim do corredor, o número 74. - Saiu, com pressa e sem se despedir.

No percurso até o fim do corredor, havia diversos outros quartos, com o mesmo cheiro de hospital e com o mesmo silêncio. Lembro que naquele exato momento, enquanto eu olhava quarto por quarto, um paciente tinha morrido. Eu parei. Talvez por curiosidade, ou qualquer coisa assim. Era uma criança, deitada, imóvel, sem respirar. Dava pra ver, pela feição intacta, que aquela garotinha havia passado por muito sofrimento, logo no começo da vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro. Além da morte, havia o branco intenso no quarto e, aliás, em todos os outros quartos. Naquele momento desejei um hospital colorido, com cada azulejo de uma cor, as enfermeiras de rosa, outras de azul, os médicos de amarelo, e a garotinha, ao invés de pálida, com a pele rosada, assim como deveria estar.
Em volta dela tinham três pessoas, imagino que fossem os pais, e talvez um irmão. A mãe, de lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha a abandonado havia muito tempo. O outro garoto, o irmão, estava sentado no chão, manuseando uma miniatura de carro - única coisa que não era branco no quarto, era amarelo -. Imagino que naquele momento o garoto nem imaginasse o que estava se passando, e sinceramente, é bem melhor nunca saber de nada. Bom mesmo é criar um mundo imaginário, entrar num carro amarelo e percorrer o mundo inteiro, e tudo isso dentro de um hospital, com a irmã morta bem do lado. Por vezes quis não saber de nada, não me preocupar, só viver, e mais nada. Ele não sabia de nada. Finalmente, o pai. Ele estava com o braço direito envolvendo os ombros de sua esposa, sem chorar e sem nada, embora, por dentro, ele estivesse quase explodindo, ou talvez pensando em se jogar pra fora da janela. A porta do quarto foi fechada ao perceberem minha presença. Não os culpei por quererem um pouco de tempo sozinhos, naquele momento tão raro. Não tinha o direito de culpá-los, nem de nada.

- Sérgio! - Escutei uma voz vinda por trás. Era Ana, minha irmã. - Desculpe, estou atrasada. E como tá?

- Cheguei agora também, ainda não o vi.

Caminhamos lentamente até o quarto 74. O corredor era bem grande, e os quartos eram ordenados numericamente. Estávamos, naquele momento, em frente ao quarto 13.

- Por que acontece, será? - Falou, olhando pro chão.

- Nem imagino. Estou apenas deixando pro tempo o que é coisa dele. - quis abraçá-la, mas não o fiz.

- É tão difícil. O que a gente fez pra merecer? Essas coisas são injustas. Tanta gente ruim no mundo e é a gente que paga, sem ter dado motivo nenhum? - Vi um brilho em seu rosto, mas era só lágrima, a tristeza saindo desesperadamente pelos olhos, andando lenta pela face, e transformando tudo em angústia, pra depois se desfazer no chão feito gota d´água, assim, como se nada tivesse acontecido.

Eu não sabia o que responder, então fiquei em silêncio, respeitando sua tristeza, embora eu estivesse exatamente do mesmo jeito. Agora era eu e ela, minha irmã, no mesmo corredor. De barulho só havia os nossos próprios passos, e o delicado barulho - quase inaudível - de lágrima se espatifando no chão.

- 74, é esse - disse enquanto enxugava, delicadamente, cada gota que havia saído de seus olhos.

Ficamos um tempo ali, olhando para aquela porta, que por acaso era branca. Por um minuto eu me perdi, pensei em desistir, sair correndo e voltar pra minha casa, gritando e libertando tudo de ruim que estava bem no meu peito. Eu sentia como se ele - meu peito - fosse explodir, como se tivessem o enchido com cem batatas, mesmo não havendo espaço nem pra duas. Queria pedir socorro, mas não tinha quem pudesse me ajudar, nem apoiar, nem nada. Era uma situação delicada, aliás, delicadíssima. Olhei pro lado, Ana estava imóvel, olhando incessantemente para o número 74, bem em cima da porta. Foi nesse momento que a porta se abriu.

- Olá, sou o Dr. Flávio. Vocês são Sérgio e Ana?

- Sim, somos - Respondi, serenamente.

- Imagino que a situação já tenha sido explicada, mas de qualquer forma, aconteceu hoje, às cinco da manhã. Seu pai já estava fraco, era improvável que aguentasse mais uma cirurgia tão complexa. Não houve dor, morreu enquanto estava dormindo. Sinto muito. - Saiu andando, com o típico jeito frio que os médicos costumam ter, e um papel na mão, fazendo anotações.

Eu o vi ali, deitado, imóvel naquela cama. Dava pra ver, pela feição intacta, que ele já havia passado por muito sofrimento, nesse fim de vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro.
Comecei a lembrar de tudo que a gente havia passado juntos. Ele que me ensinou a ler, escrever, e mexer na velha máquina de datilografar. Era curioso o jeito dele de me ajudar. Quando eu estava muito triste - muito mesmo -, ele não tentava me deixar feliz, nem nada. Ele deitava do meu lado na cama e se entristecia junto comigo. Chorávamos feito duas crianças, e ele nem sabia o motivo. "Eu fico triste com a tua tristeza", ele dizia. Isso me confortava mais que qualquer coisa. Não o fato de ele ficar triste, mas sim a certeza de que ele era meu único amigo, embora eu conhecesse centenas de pessoas que se diziam "amigos". Foi também quem, com enorme paciência, me contava histórias por todas as madrugadas de sábado pra domingo. Um dia me contou como conheceu minha mãe - também já falecida -, e contou detalhe por detalhe. Ele disse que a boca dela tinha gosto de morango com açúcar, e que os cabelos lisos e pretos pareciam com as cachoeiras de onde eles costumavam acampar, quando jovens. Contava da pele branca. "Era cor de leite sem ser pálido. Um branco bonito", ele dizia. Conheceram-se na escola, bem novinhos, e ficaram juntos até que a morte chegou em nossa casa. Mamãe havia morrido. O que eu sei é que era amor, e dos grandes. Eu gostava dele, do meu velho.

Ana não aguentou. De lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha nos abandonado havia muito tempo. Envolvi, com meu braço direito, os seus ombros, sem chorar e sem nada. Pensei em fugir, talvez me jogar pela janela, e foi nessa hora que vi um rapaz, parado, olhando pra gente. Continuou ali sem falar nada, e foi então que eu o chamei pra dentro do quarto. Era o pai da garotinha. Choramos - Eu, Ana, e ele - até o fim do dia. Ele por não poder ser pai, e eu por ter perdido o meu, assim, tão de repente.

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Ganhei o selo da Carol, autora do blog Por Escrito.



Vai para José, ótimo escritor e autor do blog Vítimas do Tédio


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sexta-feira, 1 de maio de 2009

Imatura Noção de Romance


Eu era bem pequeno, e nem me importava muito (quando a gente é pequeno a gente não se importa com nada), mas naquela vez eu me importei, pois era a primeira vez, em toda a minha vida, que eu estava chorando com sinceridade. Sabe, todas as crianças choram, talvez por que chega a hora de ir pra casa justo quando a brincadeira está no auge do divertimento, ou talvez por que alguém lhes roubam os doces prediletos, ou qualquer coisa assim. A solução, pra o que quer que seja o problema na infância, é simplesmente chorar. Algumas vezes isso funciona, sim, mas na maioria das vezes simplesmente voltam pra casa, chorando ou não. No meu caso era diferente. Não estava chorando porque eu ia voltar pra casa, muito menos por terem roubado de mim algum doce. Estava chorando porque tinha caído. Já havia caído diversas outras vezes, mas nada tinha sido tão sério. Olhei meu braço direito, e ele estava um pouco diferente, eu sentia como se houvessem milhares de cordas dentro do meu braço e elas estivessem sendo esticadas com a maior força possível, aquilo doía.
Sem saber o que fazer diante daquela situação, chorei. E foi o choro mais sincero da minha vida, cada intervalo-para-tomar-folego-para-gritar-de-novo era uma preparação para um grito, um grito de "Socorro! Estou morrendo! Me ajudem!", embora eu não estivesse morrendo, nem dizendo palavra alguma, simplesmente gritando. Pra uma criança, que mal sabe o que é viver, qualquer coisa muito diferente disso - de viver - passa a ser um motivo para pensar "Eu estou morrendo". No fim deu que uma moça, muito simpática por sinal, me acudiu e me levou pra um hospital próximo dali. Era uma simples torção, mas para mim, que nunca havia sentido dor alguma, aquela era a pior dor do mundo.
Teve também o ocorrido do dente, quando eu estava com onze anos. Uma vez me olhei no espelho, e estava saindo da minha boca umas coisinhas brancas, que alguns chamavam de pus, ou qualquer coisa assim. Era estranho, mas não era minha culpa, eu não tinha feito nada pra que minha boca tivesse se transformado naquilo tudo. As gengivas, de vermelhas, já estavam passando pra alguma outra cor indefinida, e eu sentia latejar, como se minhas gengivas estivessem enormes, talvez com uns dez metros de largura. Cada vez que meu coração pulsava, a gengiva latejava. Era impressionante e incrivelmente horrível.
Sentia cada gota de sangue passando por entre as veias de minha boca inteira, como se elas, as gotas, tivessem braços e unhas afiadíssimas, rasgando minha boca inteira conforme elas iam nadando por entre minhas veias. Não dava mais pra aguentar, já tinha gritado quase tudo de voz que eu tinha, e sempre guardava um pouco pra depois.
Uma faca estava na pia do banheiro, bem embaixo do espelho, porque eu já tinha pensado na hipótese antes, quando a dor estava bem no começo. Mas a dor piorou muito, e a idéia estava muito forte, quase incontrolável, mas eu ainda conseguia aguentar.
Sentia que meus dentes estavam se soltando, como se o tempo todo estivessem colados por uma cola, bem em meu crânio, e aos poucos a cola estivesse apodrecendo, e eu sentia dente por dente descolando, amolecendo, e descolando mais, e quase caindo. Mas isso, de fato, nunca chegou a acontecer.
Comecei a andar compulsivamente com um espelho de bolso, pra conferir se os dentes não estavam caindo de verdade. Conferia a cada cinco minutos, mas aparentemente sempre estava tudo normal, nada estava estranho.
Aguentei um pouco mais, e finalmente desisti. A dor já estava impossível. Peguei aquela faca, que ainda estava na pia do banheiro, e posicionei a ponta bem no meio do meu dente, de onde estava vindo a dor mais forte. Bati com força, e numa questão de segundos, voou sangue pra todos os lados, junto com o dente. A dor passou na hora.
Conforme fui crescendo e amadurecendo percebi que, além de dores físicas, existem, para o nosso desespero, as dores emocionais. E foi dessas que eu mais sofri. Os sentimentos começam a tomar vida própria quando os primeiros pelos começam a aparecer pelo corpo da gente. Lembro bem dessa época, que eu entrava no banho e começava a lembrar das garotinhas do colégio, especificamente da Júlia, e assim ficava uns quarenta minutos "tomando banho". Foi também por esses tempos que, por acaso, essa Júlia não me dava atenção. Cheguei a levar flores em sua casa (que coisa idiota), mas quando cheguei lá o meu melhor amigo (Por coincidência, Júlio) já havia chegado, também estava com flores. Lembrei do braço, e do dente, e vi que aquela dor que estava no meu peito era maior que qualquer uma que eu já havia sentido antes. Estranho é que eu consegui me controlar. Joguei as flores no lixo e caminhei de volta pra casa. No caminho ocorreu tudo bem, parei numa praça pra olhar um pouco pro céu (não sei o motivo, só me deu vontade), e depois de um tempinho assim voltei pra casa.
O problema começou à partir desse ponto. Toda vez que entrava em casa e me via sozinho, me batia um desespero impossível, e não havia moças simpáticas para me levar pro hospital, muito menos facas para eu arrancar toda minha dor à força. Eu, com minha imatura noção de romance, só tinha a mim mesmo, e não sabia o que fazer. Me afundava em choros e gritos abafados pelo meu travesseiro - Eu gostava daquele travesseiro, ele possibilitou a minha privacidade. Poderia gritar à vontade, desde que eu estivesse com a cara socada nele.
Pior ainda era no colégio, onde eu era obrigado a ver Júlio e Júlia de mãos dadas, feito dois pombinhos imbecís. Eles saíam sorridentes, andando lentamente e parecendo estar no mundo da lua, flutuando por entre as nuvens idiotas do amor. Amor, bela piada. Eu não sabia mais se eu sentia raiva ou tristeza. Esses dois sentimentos, em excesso, parecem ser exatamente a mesma coisa, e era assim que eu me sentia, triste-com-raiva.
Passou algum tempo, talvez uns dois ou três meses (o que pra mim foi uma eternidade), e eu fui me esquecendo. Na verdade não era se esquecer, e sim se conformar com o lixo por qual eu estava passando. Continuava tomando banhos de quarenta minutos, e continuava afundando a cara no travesseiro, mas os gritos eram menos frequentes, e o pensamento no banho não era sempre direcionado a Júlia. Além disso, passei a não reparar mais no estúpido romance de Júlio e Júlia (Até o nome combinava, desgraçados), e foi bem aí que tudo me deixou mais triste-com-raiva ainda. Como não estava mais reparando nos dois, não tinha percebido que eles não estavam mais juntos.
Júlia, talvez por pura pirraça, veio falar comigo no colégio, e disse que o tempo todo ela estava com Júlio pra causar ciúmes em mim, e que na verdade o garoto por qual ela sempre esteve apaixonada era, de fato, eu mesmo. Era uma boa notícia, mas eu não consigo definir se isso era pra ter me deixado feliz ou mais triste-com-raiva ainda. O que deu foi que não fiquei nem de um jeito nem de outro. Ao ouvir aquelas declarações idiotas, depois de tanto tempo de sofrimento e desespero, virei as costas e fui embora. Assim, sem mais nem menos. Admito que fiquei arrependido por uns tempos, na verdade por muitos anos eu pensei em voltar pra ela, levar flores, e dizer que sempre a quis pra mim, e um dia, resolvi que era isso que eu iria fazer.
Saí de casa, com minha melhor roupa, entrei no meu carro (Já tinha carro, pois já havia passado muito tempo da época do colégio), passei em uma barraca de flores para comprar a mais bonita delas, e comprei. Era uma Jasmim, meio branco, meio rosa, linda. Resolvi parar o carro duas ruas pra trás, para chegar caminhando em sua casa, recordando os velhos tempos, e tudo mais. Mas acontece que quando cheguei, Júlio já havia chegado primeiro, e também com Flores. A única diferença era o Jaguar, que comparado ao meu humilde Ford, era um carro impecável. Sinceramente, eu já esperava que isso acontecesse, e tinha ido pra lá psicologicamente preparado para qualquer coisa desse tipo. Mas pela minha imatura noção de romance, não adiantou, e só senti as consequências quando me vi sozinho, perto do travesseiro.