quarta-feira, 22 de julho de 2009

Saudade


Para ler ao som de:
Marcelo Camelo - Saudade

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Querida Lara,

Confesso que tenho sim alguma coisa a te dizer, mas antes tenho outras coisas ainda, talvez não tão importantes quanto esta primeira, mas ainda assim são coisas e tudo que se pode chamar de coisa deve ser dito. É que ultimamente ando pensando muito, e quando digo pensando me refiro à filosofia, não essa de Platão e Aristóteles e sim essa das pessoas comuns, as perguntas sem respostas que todos ainda teimam em fazer incessantemente e infinitamente até o fim da vida, e não que de fato tenham alguma resposta. Eu estou ainda procurando e tenho sim qualquer esperança em entender o que não tem sentido algum. Mas não se trata disso. É o medo que me atormenta, e essa é uma das coisas que tenho antes pra dizer.

Esse medo absurdo que tenho de envelhecer. Acho que eu sou habilidoso apenas em ser jovem. Não me imagino velho nem daqui a cinquenta anos. Posso até me ver com os cabelos brancos e a cara enrugada, mas desde que eu esteja assistindo desenhos animados, tocando musicas de três acordes no violão ou qualquer coisa assim. Lembro dos bons tempos, bem melhores que esses de agora, bem melhores – Os tempos passados sempre são melhores –, aqueles em que andávamos por aí no meio das casas bonitas e você me falava qual você mais gostava e eu concordava, às vezes não, apontava que a nossa casa seria assim, e assim, ou talvez assim, o que acha desse marrom? Não, não... bege é mais bonito. E quando você foi embora eu passei tinta branca por todas as paredes beges e marrons de nossa casa nova, que foi pra eu tentar mudar alguma coisa, embora eu soubesse a todo momento que as cores ainda continuavam ali, se escondendo por baixo do branco e liberando todas as energias vindas do passado que me faziam lembrar de nós e chorar, não fisicamente e sim psicologicamente. Chorava psicologicamente porque depois de um tempo soltar berros e lágrimas pelos olhos se torna uma coisa absurdamente ridícula e entediante. Prefiro em pensamento, sem os berros e sem as lágrimas.
Além da tinta, eu renovei os móveis. Joguei fora o sofá e a geladeira que sua mãe nos deu, e não que eles fossem feios. Eles eram lindos, mas tudo nessa casa me lembrava você e eu não queria viver por entre seus fantasmas, não mais. O guarda-roupas marrom está branco, e o lugar onde ficava suas roupas guarda agora meus aeromodelos. Agora coleciono aeromodelos, embora eu não seja muito bom nisso. A cama agora é só colchão. Doei a parte de madeira para a caridade. Não preciso de muito luxo. Não mais. Troquei a TV, a pia do banheiro, os tapetes, e tudo mais que você imagina. Guardei apenas algumas fotografias nossas, mas não as vejo muito, a não ser nesses últimos tempos. Só quando sinto muita saudade, e quando digo muita me refiro a um nível de saudade absurdo, talvez o máximo de saudade que uma pessoa consiga sentir. Como se fosse uma abstinência de heroína ou qualquer coisa assim. E ultimamente ando olhando muito essas fotografias.
A loja não anda vendendo muito, mas pelo menos consigo me manter. As coisas são difíceis sem você e, alem disso, ninguém mais compra disco em vinil hoje em dia. Eu não consigo levar nas costas o que você me ajudava a carregar pela metade, ou talvez carregasse tudo e deixasse o mais fácil para mim. Pensei em fazer alguma outra coisa, sim, mas como disse, estou envelhecendo e não sei ser essa pessoa que o tempo está me tornando.

Depois que você partiu eu passei muito tempo fingindo ser um alguem. Fingi tanto ser esse estranho que hoje eu não sei mais não o ser. Me tornei o meu próprio personagem e agora, quando eu quero ser eu mesmo, tenho que lembrar de como eu era antes e fingir. É uma confusão, um pouco confuso sim, eu sei, mas é exatamente isso que está acontecendo. Me olho no espelho e não sei se é eu ou se é quem eu finjo ser. Tudo já se tornou uma coisa só. Eu não sei mais quem eu sou porque na verdade alguma coisa é que me é, e essa coisa não sou eu, se é que isso faz alguma diferença. E faz. Gigantesca.
Lembro ainda dos tempos em que eu era eu mesmo, junto com você, e me pergunto se você já esteve distraída. Quando falo distraída me refiro a uma longa distração, talvez cinco, dez, quinze anos. É que me veio, assim, numa dessas noites, sozinho por entre as paredes brancas, que os meus melhores anos eu passei distraído. Não que eu estivesse prestando atenção em qualquer outra coisa, mas eu sempre achava que os tempos podiam melhorar ainda mais, sem perceber que já estavam no limite do que chamam de bom, e eu esqueci de aproveitá-los. Achei que durariam para sempre. Talvez seja porque quando uma coisa boa se torna constante, ela passa a ser normal depois de um tempo e, ainda depois, em anos de tempos bons, o tédio chega e é aí que o inferno inteiro começa. Eu joguei tudo para o alto pensando que eu iria ser feliz de qualquer outro jeito, mas na verdade eu só não lembrava mais que eu já era feliz e que a tristeza, essa da qual todo mundo falava, de fato existia. E existe. E você, já esteve distraída? Mesmo que sim, eu imagino que na sua situação não importa mais, já que tudo é branco e tudo é triste, ou talvez isso seja a felicidade, o branco, o vazio. Na ausência de tudo há também a ausência da tristeza. Eu não entendo, e ninguém entende o lugar por onde andas. Não ainda.

Já te falei as primeiras coisas e agora eu tenho que te dizer o que realmente é importante. É que é difícil para eu dizer, quase impossível, talvez eu não consiga, não sei se entende. Tantos anos sozinho, aqui ou na loja, sem falar com ninguém a não ser com o carteiro e as pessoas que me entregam a água e as compras, de vez em quando alguma coisa a mais que eu encomendo, quase nunca, e as únicas palavras que eu escuto são assine aqui, aqui e aqui, por favor. Eu não me dou o trabalho de ir até o mercado ou qualquer outro lugar. Compro tudo na internet. O fato é que eu desaprendi a falar com as pessoas, e principalmente com você, que partiu há tantos anos e me fez não querer mais falar com ninguém. Mas é claro, sim, tenho que te dizer e eu estou enrolando. É que é difícil dizer, eu não consigo. Eu já vou dizer. Bem, o que eu tenho pra te dizer é que. É que. Nunca te disse isso. Bem, por onde começo? É que. É que. Está bem, estou quase criando coragem. O que eu tenho de importante pra te dizer é que eu te amei e. É que eu te amei e. É que eu te amei e eu. É que eu te amei e ainda te amo, e sinto saudade. Aquela saudade das fotografias, e ainda mais. Saudade absurda, impossível. Saudade. Saudade. Saudade. Saudade. Até que a palavra perca o sentido. Saudade. Saudade. Saudade. Saudade... Tenho saudade de você e de tudo que você me trazia, e tenho saudade da minha vida antiga, me sinto como se um dia ela fosse voltar, essa vida, você. Meu eu verdadeiro era com você, aquela vida, a casa nova, a loja, o violão. Não esse eu de agora. Esse eu sozinho. Tenho saudade. Saudade. Tenho saudade de você e, principalmente, tenho saudade de mim.

Com amor,
Seu amor.

domingo, 28 de junho de 2009

Ensaio Sobre a Casualidade



...Avistou pela janela o vulto sem ginga no meio da multidão, andando de mãos no bolso e ficando cada vez mais longe, pequeno, pequeno. Não devia ter feito isso, pensou. Pensou e ignorou...


Infância

Reunião de amigos, festa de aniversário e todos as pessoas do colégio foram convidadas. A garrafa girava, lenta, no chão de madeira pertencente ao quarto de Ana.

– Verdade ou desafio? – Ana perguntou a Maurício, após a garrafa ter parado com o fundo apontado para ela e a boca para ele.

– Desafio. – Ele disse, com o típico nervosismo infantil, pertencente a um garoto introvertido, quase sem amigos, se não fossem aqueles.

– Finalmente um desafio... Vá para a garagem, você e Beatriz, fiquem lá por no mínimo dez minutos. Detalhe: Com as luzes apagadas.

E da roda de amigos levantaram-se Beatriz e Maurício, andando em direção à escada dos fundos, que dava para a garagem. As duas crianças, ditas crianças, onze-doze anos, cujos interesses eram apenas de diversão e não tinham ainda idade para o amor, e talvez ninguem de fato tenha. Nunca. Desceram as escadas sem palavras, e o nervosismo de Maurício já estava o causando tremedeiras, assim, de um jeito como qualquer outro garoto de sua idade ficaria. Beatriz já não estava tão nervosa, não por fora, embora por dentro estivesse quase explodindo de desespero, sem saber exatamente o que fazer.

– E estamos aqui... – Ela disse, já na garagem.

– P...pois é. – Ele respondeu, gaguejando, ainda tremendo.

– Hum...

– Bem... Eu nunca... – Numa tentativa de dizer que nunca havia, como dizem, beijado.

E foi quando os dois ficaram em silêncio, até que, num movimento quase intacto, as cabeças foram se aproximando, num tom de dúvida, indo e não indo, e daí o beijo. Não que fosse um beijo de fato, mas sim um encosto de lábios que, quando crianças, as pessoas costumam chamar de beijo. Sem fechar os olhos, sem abraços e sem ternuras. Apenas um encosto de lábios, encosto aquele que rendeu a Maurício ao menos um mês de pensamentos alheios, no banho ou na cama, antes de dormir, enquanto explorava seu corpo, sem que enjoasse da cena do rosto de Beatriz e da textura de seus lábios.

Adolescência

A roda de amigos cercando a mesa de centro, que carregava em si as carreiras, as brancas, das quais são inaladas como alguma coisa qualquer, comida ou sexo, num ritual místico de entorpecimentos. Garotos e garotas se divertindo, os que não conseguem ainda tentando, ao som do blues americano, que era para o clima, como diziam. Dessa vez Jimmy Hendrix, Red House, após Ana, Maurício, Ricardo e Betinha terem entrado no ritual.

– É tua vez, Beatriz. – Ana disse, apontando para o amontoado de pó branco exposto à mesa.

– É que eu nunca...

– Sem essa... larga de frescura.

Ajeitou os cabelos vermelhos, posicionou-os atrás das orelhas, e ainda segurando-os, ela abaixou a cabeça, unindo-se ao ritual. Inspire tudo, ouviu alguem dizer, e assim o fez. De repente já não estava mais ali. Como um orgasmo vindo nos pés para a cabeça, não necessariamente nessa ordem, ela repentinamente deixou de se importar com qualquer outra coisa no momento. Olhou as pessoas na sala de estar, todas elas, dezessete anos, alguns talvez dezoito-dezenove, uma a uma, olhou sem de fato olhar, apenas percebendo as imagens, como um cinema mudo ou psicodélico. Sentiu uma mão em sua nuca e não se importou. A mão desceu pelos peitos, talvez houvesse tido algum toque nas pernas, já não se importava. Ela cedia.

– Vem aqui garota – Ana disse, sussurrando em seus ouvidos – vem que eu quero te mostrar uma coisa.

Foi guiada até um cômodo que deduziu ser o quarto da casa, talvez pertencente à Ana, já não sabia mais, embora fosse o mesmo onde havia estado a alguns anos atrás – Maurício, a garagem –. Foi deitada na cama de lençóis vermelhos. Não que estivesse inconsciente ou inabilitada para ser guiada dessa maneira, mas estava num estado tão agradável e distante que não mais conseguia se importar com alguma coisa. Ana já por cima de seu corpo, ainda movendo lentamente as mãos pela sua barriga, fazendo com que a camiseta levantasse e a roupa íntima ficasse exposta. A pele era branca, e os peitos ainda mais, foi ver depois.

– Você gosta? – Sussurrou novamente, e Beatriz, sem pensar, talvez porque já soubesse, fez que sim com a cabeça, já de olhos fechados.

As roupas foram removidas, uma a uma, primeiro a camiseta, precedido da calça jeans, as roupas íntimas, primeiro a de cima, depois a de baixo, até que ela se encontrou nua, junto com a outra, também nua, as pernas abertas, os dedos de Ana entrando e saindo e os beijos ainda no pescoço, sempre por parte de Ana e nunca por parte de Beatriz, que apenas cedia mais e mais, e depois a boca de Ana por entre suas pernas, que estavam já abertas ao máximo, mesmo ela tentando abri-las ainda mais, até que, em alguns minutos, talvez quinze-vinte minutos, já não sabia, a porta do quarto se abriu e houve algum outro corpo, talvez Maurício, talvez Ricardo, que começou a penetrá-la, após te-la acariciado, e ela não mais se importava, enquanto Ana delicadamente acariciava ambos os corpos, a dança, a dança, a dança, a música na sala, o sexo no quarto. Ainda houve alguma dor, talvez bem de fundo, quase imperceptível, uma dor até quase agradável, talvez agradável ao juntar-se com as outras sensações, a do suor, os hálitos de cigarro de cereja, os restos de cocaína que incomodavam o nariz, já dormente, o gosto amargo descendo do nariz pela garganta, as penetrações, de dedo e de sexo, o calor, o cheiro, e por fim o sangue, sinal da agora impureza, que definitivamente ela não se importava em carregar, e então os líquidos, os vindos de Ana e o outro masculino, branco, precedido do sono, o sono pesado que durou até a manhã seguinte.

Maturidade

As brincadeiras de garrafas já haviam virado jogatinas na noite em uma esquina qualquer, e a cocaína não lhe servia mais para nada, o que fez com que as agulhas de heroína a penetrassem agora em qualquer veia que fosse possível, talvez axilas, ou quaisquer lugares que não fossem expostos aos clientes, o que faria o preço abaixar. Setenta e seis reais por noite, sem sexos adicionais, e sem contar as outras taxas. Não que ela contasse que fosse de programa, assim, de repente. Deixava isso para o final, já que sabia escolher bem, conhecia de todos os tipos.

– Whisky, por favor, daquele ali, o Ballantine´s. – O homem disse à atendente, enquanto estava sentado no banco alto, o cotovelo apoiado no balcão.

– Aqui está, senhor.

Do outro lado as duas, Ana e Beatriz, juntas, na noite fria de São Paulo, barzinho qualquer, para os lados da Augusta, não exatamente ali, olhavam naquela direção, reparando o homem de jaqueta preta no balcão, ainda sozinho, esperando alguma coisa acontecer.

– O que você acha daquele ali? – Ana perguntou, apontando o homem.

– É... aquele parece bom...

– Claro que é bom. – Ana disse, antes de ficar alguns instantes em silêncio – Talvez você devesse tentar....

– É...

– Mas não faça parecer artificial.

– Sim... está bem, vou tentar...

E foi quando ela andou em direção ao homem. Os saltos altos, a saia vermelha que cobria sua nudez, diretamente, não vestia roupas íntimas. A blusa curta, parte dos peitos à mostra, não tudo, rendia mais dinheiro. Desviou de um grupo de rapazes que estavam jogando poker na mesa verde do canto, continuou. E lá vou eu de novo, pensou. Talvez estivesse cansada, talvez não, poderia ser só tristeza, descaso, já não mais sabia. Sentou no banco ao lado do homem. Acho que estou sendo casual, pensou novamente.

– Me vê um Martini, por favor. – Disse à atendente, enquanto arrumava os cabelos vermelhos. Reparou no pulso do homem. Seria Rolex, Mont Blac?, pensou.

– Aqui está. – A moça disse, após preparar a bebida.

Deu um gole e cruzou as pernas, esperando alguma atitude do homem, até que, finalmente, o escutou:

– Olá. – Ele disse.

– Oi... – Respondeu, olhando para o outro lado, cabeça parcialmente erguida, fingindo desinteresse.

– Eu sei o que você faz.

Como um susto, ela olhou para o rosto do homem de repente, surpresa.

– O que foi que disse?

– Você. Eu sei o que você faz.

– Sabe?

– Sei... já está estampado bem em seu rosto, e eu vou direto ao assunto.

Acho que eu não fui casual, ela pensou.

– É... é que...

– Eu quero que você seja casual, coisa que até agora você não conseguiu. Mas escuta bem, essa casualidade vai depender bem mais de mim do que de você.

– Não consegui mesmo?

– Eu já logo percebi, você e tua amiga olhando para cá, apontando, imaginei que uma das duas iria vir. Mas escuta, não é esse o ponto. Já que quer casualidade, eu te pago e você faz o que eu quero, está bem?

– S... sim... está bem – Disse, já perdida, sem saber exatamente como agir.

– Eu quero que você me dê seu endereço.

– Como assim, meu endereço?

– O lugar onde você mora.

– E você espera que eu passe meu endereço, assim, para qualquer um?

– Tome. – Tirou do bolso um pequeno bolo de notas, contou duzentos e cinquenta reais, a entregou – Eu te pago metade antecipado, agora.

– Bem... é que não é exatamente isso o que eu faço. – Disse, após ter aceitado o dinheiro.

– Pois então faça... quer mais? – Retirou mais cem reais, estendeu a mão esperando que ela pegasse. E pegou.

– Tudo bem... – Ele não deve ser qualquer um, tem muito dinheiro, pensou. – Diga o que quer que eu faça.

– Eu quero casualidade. Se nunca o fez antes, faça disso um ensaio.

– Um ensaio sobre a casualidade?

– Nomeie-o como quiser. O fato é que eu quero entrar em tua casa, sem que você saiba, como um estranho.

– Sim... e?

– E você faça as tuas rotinas normais do dia-a-dia. Vou aparecer a qualquer momento, provavelmente à tarde, e você não vai interromper nenhuma de minhas atitudes quando eu já estiver lá.

– Acho que posso fazer isso...

– Uma última coisa: Deixe a porta destrancada, vou entrar sem avisar.

– Bem... é que... – Ficou em silêncio por alguns segundos, pensativa. – Está bem, está bem. – Retirou da bolsa um pedaço de papel e uma caneta, anotou o endereço e o entregou. – Está aqui. Amanhã, correto?

O homem deixou o dinheiro da bebida no balcão, levantou e partiu, sem responder e sem se despedir.

Ensaio Sobre a Casualidade

Ele abriu a porta, quase não abrindo, devagar, e ainda enquanto estava entreaberta, olhou o lado de dentro da casa e avistou-a de costas, Beatriz, semi-nua, lavando alguns pratos e copos sujos que repousavam em cima da pia. Preocupava-se principalmente em não fazer barulho, e então caminhava lento, quase parando, como um assassino prestes a esfaquear a vítima, não sendo um. Ela de costas, fazendo que não havia percebido, como se não tivesse ainda notado a presença anônima vinda por trás, talvez para fingir estar surpreendida quando ele a tocasse. E tocou. Chegou lento, primeiro a mão direita nas costas, acariciando como quem poem mão em lenço de seda, e em alguns instantes os lábios já alcançavam o pescoço feminino e branco, depois de afastar os fios quase vermelhos de cabelos lisos e sujos, de faxina. Em alguns lapsos de tempo, já nua, sem saber por quem, sem saber com quem, os dois deitaram-se no amontoado de cobertores no chão – por improviso a cama – e as pernas femininas se abriram, o corpo por baixo, o suor junto com a saliva e os fluídos de baixo misturaram-se numa coisa só, num ritual de dança de estranhos, movimentos repetitivos de ida e vinda feito maquinaria de trem, no silêncio, entre o suspiro do respirar e o grito do gemido. Entre a carne e a solidão a dois. A sós, cada um em sua própria solidão.

– Tudo bem... pode ir embora agora, já fiz o que você quis. – Ela disse, enrolando uma toalha improvisada em volta do corpo, após o ato, numa tentativa quase falha de cobrir sua nudez.

Sem palavras e sem feições, ele então vestiu a calça jeans, já usada pelo terceiro dia, junto com a camiseta branca e a jaqueta preta, mesma do dia anterior. As botas marrons e o andar calmo e sem ginga, típico. Típico dos solitários. Solitários e ricos que vagam aos ventos. Deixou a outra metade em cima da mesa, trezentos e cinquenta reais.

– Até um dia desses. – Disse, já de partida, de costas para ela.

Não houve respostas, e nem era preciso. "Acho que não", ele entendeu apenas pelo olhar seco. Ele partiu e ela voltou à pia, continuou a lavar o resto de copos que estavam repousados. Avistou pela janela o vulto sem ginga no meio da multidão, andando de mãos no bolso e ficando cada vez mais longe, pequeno, pequeno. Não devia ter feito isso, pensou. Pensou e ignorou, fingiu não ter feito. Tenho que parar, pensou. Pensou e nunca parou. Nunca parou. Era ainda o ensaio. O ensaio.

domingo, 14 de junho de 2009

Violeta

Para Brenda,
ainda eterno amor.

Coletou uma tira de barbante de dentro do pote, pequena, talvez dez ou quinze centímetros. Era vermelha, a tira. Coletou com o dedo indicador e o polegar, enquanto estava ainda sentado na poltrona da sala, ao lado do vaso com violetas, depois de ter arrancado uma folha do livro que mais gostava. Posicionou a folha na perna direita, colocou os óculos, e com muito cuidado, com cola líquida, desenhou um arco no papel. Foi posicionando o barbante em cima da cola, fazendo com que o barbante ficasse eternamente no formato de arco.

– Espera só mais um pouco, ainda não está pronto. Continue a fazer o que está fazendo – Ele disse.

Ela voltou para o quarto, e enquanto se olhava no espelho com o vestido vermelho nas mãos, posicionando-o em sua frente para prever como ficaria em seu corpo, aproveitava aqueles últimos momentos. Colocou o vestido na mala vermelha e continuou a procurar outras coisas. Vasculhou a gaveta da direita e encontrou alguns livros infantis, junto com algumas joias falsas, compradas na pequena barraca, no centro. Agarrou os brincos de argola, não tão grandes, com detalhes laranja, e os colocou nas orelhas.

– O que você achou desses? – perguntou, já da porta do quarto, pra que ele a visse.

Ele ainda estava concentrado, de cabeça baixa, como se estivesse trabalhando em uma daquelas miniaturas de navios que ficam dentro de garrafas. Mas não. Era vez da segunda tira de barbante. Laranja. Com a cola líquida, desenhou, logo abaixo do barbante vermelho, um novo arco, quase encostando no primeiro, e depois de pronto, posicionou a tira laranja e também a eternizou em formato de arco. Percebeu que ela havia falado alguma coisa, e como um susto de quem é interrompido de alguma concentração intensa, levantou a cabeça e olhou na direção da porta do quarto, onde ela estava parada, esperando sua resposta.

– O que foi que disse?

– O que você achou desses? – Apontou, com o indicador direito, para uma das orelhas – Os brincos.

– Ah, sim, os brincos. Estão ótimos. – Ficou em silêncio por alguns segundos, olhando-a. – Já terminou de arrumar suas coisas?

– Não, não. Ainda não. Está difícil escolher – Entrou novamente no quarto, e lá de dentro continuou, num tom mais alto: – Você está preocupado?

Ele não respondeu. Talvez não a tivesse escutado, ou simplesmente ignorou. Já estava na terceira tira de barbante. Amarela.

– Você está preocupado? – repetiu.

– Não sei, não sei. Estou com medo, só isso. Nunca passei tanto tempo assim, longe.

– É só por quatro anos, a gente se acostuma. E, também, existe alguns métodos que tornam o sofrimento um pouco menor.

Ela arrancou os brincos, se olhando no espelho, e colocou-os na pequena caixa de madeira que estava a tanto tempo jogada no fundo do armário. Seria agora, por improviso, a caixa de joias. Andou um pouco pelo quarto, indo e vindo numa mesma linha imaginária, com uma mão levantada no rosto, na boca, como quem está pensando. Parou em frente à porta do guarda-roupas e pegou o vestido amarelo, de seda, que havia ganhado a uns três aniversários antes. Vestiu-o, e em frente ao espelho, com um pé no chão por completo e o outro somente nas pontas dos dedos, girava o quadril para um lado e para o outro, tentando se ver em todos os ângulos.

– Por que é que essa coisas acontecem? – Ela perguntou, ainda num tom alto pra que ele a escutasse no outro cômodo.

– Eu não sei. Talvez por puro acaso, ou eu sei lá. Sempre acontece com a gente. “A gente”, digo, todo mundo. Quando tudo está bem e parece que a paz chegou é aí que ela não chega. Cai tudo na nossa cabeça, de uma hora pra outra. – Disse, ainda concentrado na tarefa.

Quarta tira de barbante, verde, também em formato de arco, colado logo abaixo da amarela. Continuou:

– Lembra daquela minha antiga namorada, a Lara?

– Lembro sim. – Ela disse, mexendo novamente nas gavetas.

– Lembra de como éramos juntos, unidos?

– Claro. Ela costumava ir sempre na sua casa, quando vocês eram mais novos, lembro que você me disse.

– Pois é. Jurei amor por ela, já estava até juntando dinheiro pra que a gente pudesse se casar e alugar uma casa em algum lugar...

– E qual é o ponto?

– Ela conheceu uma mulher e, de uma hora pra outra, disse que o amor por mim havia acabado e partiu. Por uma mulher.

– Você nunca havia me contado isso...

– É que as coisas dão errado. Num dia está tudo bem e no outro acaba, você não vê? A gente não escolhe nada. Absolutamente nada.

Encontrou, por entre os cabides, um velho cachecol verde. Lembrou de quando o comprou, na pequena loja, simples, pendurado num suporte de madeira. “Quanto é esse, moça?”, e voltou no dia seguinte para comprá-lo. Como era bom aquele tempo, pensou. Claro que tinha algum problema aqui e outro ali, mas nada assim, tão monstruoso. Vivia com a mãe, casa pequena, mas não faltava dinheiro. Costumava ir à missa aos domingos, mas com o tempo foi desacreditando e desacreditando, conforme a vida foi chegando. Deus está morto, ouviu alguém dizer, e confirmou que, talvez, realmente o estivesse, ou pelo menos aparentava ter se esquecido dela por completo. Talvez. Melhor não pensar nisso. Melhor não pensar.
Parada, com o cachecol na mão, lhe veio o sentimento. Sentimento de saudade, de falta, de dor. A gente realmente não escolhe nada, pensou. Uma lágrima escorreu desde seus olhos até a ponta do queixo, e ela limpou. Chorava baixo pra que ele não a escutasse, e limpava, e escorria outra, e limpava.

– Vejo sim – Ela disse. – Vejo sim...

Quinta tira, agora azul. Ele fazia com todo cuidado, como se fosse de ouro, uma obra de um artista anônimo esquecido na vida, feito rato de poço. Rato de poço, pensou. Sou um rato de poço.
Tempo atrás ele começou a se ocupar, depois de perder o emprego. Pintou todas as paredes da casa com pincel pequeno, pra que demorasse mais. Gostava de pintar, e o fazia quase o tempo todo agora. Se não estava pintando, estava mexendo com cores, seja lá de que forma fosse. Cores, gostava de azul, mais que de todas.

– E onde ela está agora, a Lara? – Ela perguntou, ainda de dentro do quarto.

– Está morando na Europa, ganhando uma grana preta com essa outra mulher... Deve ser modelo, ou prostituta, não sei direito...

Ela ficou, por alguns segundos, olhando fixo para a cama, com o dedo indicador nos lábios, como quem está tentando lembrar de alguma coisa, até que finalmente disse:

– Onde está aquele nosso retrato, de quando a gente foi pra Floripa?

– Deve estar debaixo da cama, naquela caixa de sapatos. – Ele disse, enquanto começava com a tira de cor anil.

Abaixou, puxou debaixo da cama a caixa de fotografias. Abriu-a. Procurou, por entre as tantas fotografias, a que ela desejava, até que, enfim, encontrou e colocou dentro da mala, que a essa hora já estava quase feita. Pra eu lembrar de nós enquanto eu estiver lá, ela pensou. Pra eu lembrar de nós.

Tira de cor violeta. Só falta essa, ele pensou. Mas não quis colocá-la ali, colada junto com as outras tiras de barbante, e não o fez. Olhou o arco-iris em forma de barbante, incompleto, e logo abaixo o trecho que mais gostava daquela página arrancada. Talvez o trecho que mais gostava do livro inteiro, e até de todos os livros existentes. Com uma caneta esferográfica, grifou, com todo cuidado: “...que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira...”* e logo abaixo, o que ela havia se tornado: “...essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso...” *.

– Achou a caixa? – Perguntou, já levantando da poltrona.

– Achei sim, a foto já está na mala, que é pra eu lembrar de nós. – Ela disse, já andando em direção à sala, a mala na mão.

– Acabei o que eu estava fazendo. Quer ver? – Ele perguntou, com a folha de livro rasgada na mão.

Ela veio em sua direção, e quando os dois já estavam em pé, um na frente do outro, colocou a mala no chão. Ele a entregou a folha, que fez com que ela ficasse olhando o arco-íris incompleto, o trecho, a folha inteira.

– Nossa, é tão lindo esse trecho. Por que nunca havia me mostrado antes?

– Não sei... Você nunca foi de ler muito. – Ele disse, com a mão direita na nuca, como quem está sem jeito, ou tímido por algum motivo.

– O arco-íris. – Ela disse.

– Que tem o arco-íris?

– Está incompleto... falta a cor violeta.

E foi quando ele arrancou uma violeta do vaso de violetas, que ficava ao lado da poltrona, e entregou à ela. Agora está completo, pensou. Um trecho, as cores, uma flor que completa as cores com o nome, violeta. O arco-íris.

– Agora está completo. – Ele disse.

– É... Agora está... – Uma lágrima interrompeu sua fala, escorrendo pelo seu rosto. – Agora está completo.

Ela o abraçou, de uma forma que a muito tempo não o fazia. Deu-lhe um beijo na boca, daqueles tímidos, como se fosse o primeiro. Acariciou suas bochechas, nuca, as mãos, e disse qualquer coisa que os casais dizem quando estão se despedindo. As lágrimas salgadas, dos dois, misturaram-se nas faces e com a saliva nas bocas. Eu não quero ir, pensou. Mas não o disse. Não quero ir, quero ficar aqui, com você, te ajudar com as cores, com as pinturas, continuar transando com você todo fim de tarde, continuar alugando nossos filmes idiotas de amor que sempre me dão vontade de chorar no final e que me fazem te abraçar forte e pensar “o meu tá aqui o meu tá aqui meu amor tá aqui”. Mas não. Tenho que ir, tenho que trabalhar. Logo, logo volto. Quatro anos, quatro anos, pensou.
Ele a acompanhou até a porta, colocou as palmas das mãos em suas bochechas femininas, macias. Deram um último e longo abraço.

– Mande cartas, muitas cartas. Todo dia, todo dia, está bem? – Ele disse, ainda com lágrimas.

– Eu mando, mando sim. Mando todos os dias, todos os dias.

– Você vai voltar mesmo? Quatro anos?

– É claro que volto, meu amor. Claro que volto. Sempre volto. Você sabe, não sabe?

– Sei, sim. Sei, sim. – Ele confirmou, de cabeça baixa.

Ela lhe deu um beijo no rosto e partiu. Despedidas longas são piores, pensaram juntos. Caminhou em direção à estação de trem, com a violeta nas mãos, o papel, o trecho grifado, pra que pudesse lembrar de casa. Ele a observou caminhando até que o corpo se tornou um pequeno ponto perto do horizonte, um ponto caminhante que voltaria dali a quatro anos. Ela vai escrever, pensou. Ela vai escrever. Entrou de volta para casa e fechou a porta, atrás de si. Andou em direção ao quarto, quarto agora silencioso. Deitou na cama, que ainda estava com o cheiro das roupas e do corpo dela. Chorou. Chorou. Chorou. Chorou. Dormiu. Chorou. Dormiu.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Deusa de Pedra


Era bonita, estática. Ainda enquanto o sol se levantava no meio do dia, formando uma luz intensa bem em cima da cidade, excluindo todas as sombras, ela ainda estava lá, no sol, parada, cinza, sem sombra. Passavam milhares de almas perdidas por ali, milhares de pessoas carentes, mulheres fumando ou com filhos no colo, mulheres misturadas com a multidão de homens de preto e maletas nos braços, que em quase todos os casos eram homens preocupados em chegar logo no escritório, pra fazer qualquer coisa que os homens de preto superiores mandassem, e assim. E assim sempre preocupados. Ela estava ali, parada, estática, bonita.
Bonita e estável, olhando fixamente para um ponto qualquer, como se não estivesse se importando com nada e ao mesmo tempo levando a dor do mundo nas costas, e aquelas. Aquelas pernas de pedra, numa pose imóvel sensual e extrema que só uma mulher consegue ter, imóvel, pra sempre, fatal, pra sempre, no meio da multidão. No meio da multidão e bonita. Tinha longos cabelos de pedras que não se mexiam, e os braços levantados, um com a mão na nuca, e o outro mirado pro ar, solto, leve e pesado, pesado de pedra. O quadril um pouco pro lado, como se estivesse dançando alguma dança tribal, indígena, rituais, danças, fogueiras, cantos, cantigas, danças. Um pé no chão e outro não, o outro levantado. Ela estava ali. Dançando imóvel.

I

Ela estava ali. Eu estava ali.

Todo dia, horário de almoço, eu passava por ela, com a maleta no braço, de terno preto. Me misturava no meio da multidão, sem saber pra onde iria, mas sabendo que seria pra perto dela. De pedra, a estátua de pedra. Tão bonita, e eu não sabia seu nome. Um dia pensei em chegar mais perto, perguntar oi tudo bem qual é seu nome?, mas não deu. Não tive coragem, à princípio. À princípio não tive coragem de nada, mas sabia de sua existência, e de tudo que ela retratava. A dança, a lua, a fogueira. Tudo. Era sempre ao meio dia, o horário que todos os Paulistas costumam sair dos iglus de cimento e janelas, e andar desesperados, como se estivessem com pressa, estando com pressa, em busca de um boteco qualquer ou algum restaurante caro, depende de quem. Depende de tudo. Tudo é assim, desesperado, na cidade grande. Rico ou pobre, desesperado. São Paulo.
Saí ao meio dia, e não lembrei que precisava comer, fui direto à praça do centro, onde ela ficava. A olhei por algum tempo, esperando que ela me olhasse de volta, e ela não olhou. Todo dia ficava na mesma posição, mesmo olhar, mesma dança, mesmo tudo. Toquei seus pés, com esperança de que ela se mexesse, mas era cinza, imóvel, gelado. Havia uma placa de bronze, bem embaixo, embaixo de seus pés, no quadrado onde ela estava dançando parada. Só havia uma data, mas não era possível fazer a leitura. Era velha, a placa. O bronze ficando preto, e as letras e números se desfazendo conforme o tempo passa. Sem sucesso, voltei pra casa. Voltei porque não havia mais nada pra mim, eu estava obcecado. Obcecado com a estátua de pedra. Ela é de pedra, foi esculpida, não tenho motivo pra amá-la, eu pensava. Pensava e mesmo assim voltava no outro dia. Por que você é tão misteriosa, por que? E nada. Ela não respondia, nunca respondia. Por que és tão bonita? Era estável, bonita.

II

Mas por que essa pressa toda?, me diziam. Diziam todo dia, e havia dias, todo dia, que eu não almoçava. Não almoçava pra poder vê-la. Cheguei um dia a tentar me posicionar bem onde o olhar dela estava se direcionando, pra poder fingir, ou acreditar, que ela estaria olhando pra mim. Mas não. Ela nunca olhava. Por mais que eu ficasse bem em sua frente, gritando hey hey hey olha pra mim, ela não olhava. Olhava em minha direção, mas não pra mim. Olhos cinzas, de pedra. Não pra mim. Parecia-me que olhava o horizonte, um olhar dançante, um olhar profundo enquanto ela estava dançando, imóvel, um olhar dançante enquanto ela estava profunda. Profunda em mim.
Seria grega, romana? Talvez moderna, brasileira mesmo, ou do chile. Talvez. Não sei. Procurei e procurei por Deuses e Deusas de toda a história e nada era parecido. Todos eram retratados em estátuas, mas ela era diferente. Era cinza, diferente. Ela dançava, e os Deuses não dançam, embora fosse interessante. Embora fosse interessante Deuses dançantes. Só acreditaria num Deus que soubesse dançar*, e ela dança. Minha Deusa dança, dança parada, imóvel. Minha Deusa dançando conforme o ritmo da cidade, acompanhando a pressa quase imóvel dos homens de preto. A rotina, segue a rotina. Dança Deusa, dança Deusa, dança, dança, dança. Não.

Não. Ela não dança. É uma estátua. Mas ela dança sim! Olha os pés dela, será que eu estou com algum problema? Ninguém percebe minha Deusa, ninguém percebe minha Deusa de pedra. Só eu, só eu percebo minha Deusa, bonita. Bonita.
Vejam, vejam aquele olho, olho cinza, já viram algum olho cinza? Já viram? Não. Não. Não. Não viram. E aquelas mãos de Deusas, que só as Deusas têm, já viram? Sim, está na nuca, mas dá pra ver um pouco, não dá? Dá sim, dá sim. E aqueles... espera. Passou mais um dia. Merda, passou mais um dia!
Mais um dia e eu não tive coragem. Não tive, mas amanhã terei. Talvez de noite, quando não tiver ninguém por lá. Depois do trabalho, não, não, depois do trabalho todo mundo tá indo embora, e os trens ficam cheios, lotados, cheirando a sovaco e vagina, odeio cheiro de vagina, mas não tanto, eu gosto, gosto sim se for parar pra pensar, mas não no trem. No trem é horrível. Horrível. Tem que ser depois. Meia noite. Não, meia noite é muito tarde, saio de casa onze e pouco. Isso. Resolvido. Onze e pouco é ótimo.

III

Eu juro, eu juro. Hoje vou pra lá. Está de noite, não vai ter ninguém no centro, a não ser os mendigos, mas eles dormem, sempre dormem, ou bebem. Bebem pra esquentar, pra esfriar, pra deixar alegre, pra acalmar. Mas não, não sou mendigo, não vou me afundar de novo numa garrafa de vinho, vinho caro, igual na época daquela vadia, vadia miserável que atrasou minha vida, da época antes, antes da Deusa, bem antes da Deusa. Vinho não, agora não. Depois talvez.

Abri a porta do meu quarto, olhei pro relógio, onze e quinze. Eu tinha dito onze e pouco, quinze é pouco, então saí aquela hora. Andei até a porta da sala, passos lentos, a lua estava cheia. Lua. Pensei em voltar pra cama, pegar um vinho e ficar ali, porque estava frio. Bem frio, e uma fogueira seria perfeito naquele momento. Ótimo, acenderia a fogueira quando chegasse lá, no centro. Não iria mais voltar. Comecei a caminhada.
Os miseráveis na rua dormindo ou bebendo, e eu não olhei nenhum nos olhos, estava guardando essa ação pra ela, só pra ela. De longe ouvia algumas melodias, bem de longe, talvez vindas do céu. Andei mais e mais e mais e eu a avistei de longe. Na mesma posição, dançando parada. A melodia aumentava e aumentava e aumentava e de repente os mendigos começaram a correr. Talvez trinta, quarenta homens e mulheres, miseráveis e fedendo, correndo na rua. Gritando, gritando, alegres, alegres sem motivos. A melodia aumentava, aumentava, e eu ouvia a flauta de madeira, e eles corriam, gritavam, os mendigos, e eu ouvia os tambores, e os gritos e as falas indígenas, todas vindas do céu. Uhh uhh uhh e reuniram-se quinze ao lado dela, da Deusa, e acenderam a fogueira, fogueira gigante. E eles dançavam em volta da fogueira, os quinze, enquanto os outros quinze ou vinte corriam em volta da Deusa, já nus, todos, homens e mulheres, e quando vi havia já uma outra fogueira do outro lado, e num lapso de tempo eu já estava nu também, correndo, pulando em volta da fogueira. Uhh uhh uhh eles gritavam, com vozes agudas, feito indígenas, e então eu comecei a gritar, numa melodia tribal, o som dos Deuses e das Deusas, ela dançava, e pulava, e dançava e a energia começou a subir e a lua ficou maior, a lua balançava e balançava e eu dançava. Até que.
Até que ela começou a rachar, a Deusa, não o corpo, mas os pés. As fogueiras já atingiam seis metros de altura, cada uma, e a mão da nuca se descolou e ela balançava a mão pra cima e pra baixo. A outra mão do ar também balançava, e balançava feito ondas de mar. Ela virou a cabeça, e por fim mexeu os olhos, já azuis, olhou pra mim, sorriu, desceu do quadrado da placa de bronze e pulava, pulava, pulava, pegou em meus braços, e a música estava alta, alta, a melodia estava alta, vindo do céu, a flauta, os tambores, agora haviam cinquenta vozes, feito corais de igreja, mas não eram de igreja, eram mendigos. E o vinho, o vinho, choveu vinho, e todos nós, nus, dançávamos na chuva de vinho e a fogueira aumentava inexplicavelmente. A sua pele cinza começava a ficar avermelhada, não do vinho, mas de qualquer outra coisa que vinha de dentro. Ela estava virando. Ela estava virando. Mulher. Mulher, minha Deusa. E eu a peguei no colo, pulando, dançando ainda, e depois ela também me pegou no colo, e me colocou no quadrado da placa de bronze, que agora estava nova, brilhante, com meu nome estampado e a data de nascimento, sem data de morte. Não pude mais me mexer, a melodia foi ficando baixa, baixa, até que eu não pude mais a escutar. E os mendigos puseram as roupas, e a chuva de vinho parou. E eu estava imóvel. Minha Deusa andando em direção ao horizonte, e eu parado. Parado. Fiquei cinza, imóvel, todos foram dormir, a cidade ficou em silêncio absoluto. Não conseguia mais a ver, e nem mexer os olhos. Eles ficaram grudados, meus olhos, olhando fixamente pro horizonte. Me imobilizei do ultimo movimento da dança, mão esquerda na nuca, mão direita no ar, leve e pesada de pedra. Um pé estava levantado, pra frente, enquanto o outro sustentava todo o peso do corpo. Corpo agora de pedra.
Passaram-se dias e dias, e uma moça, moça bonita, tocou no meu pé. Eu a senti, mas não consegui mexê-lo, embora ela tenha o tocado pra que eu o fizesse. Perguntou meu nome e eu não pude responder, mesmo querendo. Ela me disse que viria um dia de noite, mas até agora não veio, talvez um dia ela venha. Disse que eu sou um Deus, Deus de pedra, e eu não entendo. Não sou Deus. Não sou Deus. Embora eu saiba dançar, não sou um Deus. Minha Deusa também não era Deusa. Não há Deus algum em lugar nenhum.

Ninguém é nada, talvez todos sejam de pedra, e eu já não sei mais o que é pedra e o que é gente.

IV

É ela, é ela, a moça. A moça! Finalmente! Ela está vindo. Olha os mendigos, olha a chuva, olha a música! Olha a...
___________
*= Nietzsche

terça-feira, 26 de maio de 2009

Vagas Memórias de Meninos e Meninas


...Foi nesses dias, de Domingo de tarde, que nem chovem e nem fazem sol, nesses Domingos, que aconteceu...

I

Aqueles dois quartos vazios eram antes ocupados um por um homem, e outro por uma mulher, que naquele tempo não eram de fato homem e nem mulher; eram ainda menino e menina. Ele cheira passado, o quarto. Cheira um tempo que já se foi, e às vezes eu passo em frente à porta de entrada e não olho pro seu interior, talvez por já não me recordar absolutamente nada. E ainda se alguma vez o fizer, serão lembranças de coisas velhas, bem velhas, empoeiradas, que não têm mais utilidade nenhuma em minha vida e nem na vida de ninguém. Não me lembro de muita coisa, mas sei - ou penso talvez ter certeza - que lá dormiam um menino e uma menina.
Do lado da velha televisão quebrada da sala, tem algumas fotografias deles, do menino e da menina. As fotos, de tão velhas, já não conseguem mais fazer o que elas foram feitas pra fazer – Retratar algum momento distante, passado, através de uma pose ou um sorriso de alguém, o alguém que está estampado no papel, imóvel, olhando fixamente pra lente da máquina fotográfica, eternamente, eternamente -, e não mais me recordam o menino e a menina. O papel já está ficando com rachaduras e já está quase preto de tão amarelo. Esses antigos retratos me dão a estranha impressão de que naquele tempo tudo era amarelo, inclusive aqueles dois rostos em pose, do menino e da menina. Uma pequena mancha surgiu no canto inferior esquerdo, e depois a mancha amarela cobriu os pés do menino, e andando como um animal rastejante, depois de uns anos, a mancha já estava uniforme no papel, e os dois corpos - do menino e da menina -, pareciam agora vultos, vultos amarelos por entre uma fumaça amarela, por entre uma mancha. Os rostos estão quase indefinidos, e se não fosse pelo cabelo longo dela e pelo cabelo curto dele, eu não saberia dizer quem é quem. De qualquer forma, é por isso que já não passo horas olhando-as, as antigas fotografias, uma por uma. Elas estão velhas, velhas. De recordações só tenho o que fica na cabeça, e são coisas vagas. Não lembro mais da feição, nem de como eram os cabelos, nem de quase nada. Lembro que eram meninos e meninas, e que eu batia fotografias deles. Muitas fotografias.

Houve um tempo - antes das manchas no papel e antes do amarelo em todas as fotos - em que eu espalhava centenas de fotografias sobre minha cama e ficava jogado por entre todas elas, como se elas fossem água e eu estivesse nadando. Olhava uma por uma e tentava lembrar de como eu era feliz naquele tempo que a fotografia retratava. Nunca conseguia lembrar claramente, mas sabia que eu era feliz naquele tempo retratado. Só percebia o quanto eu era feliz depois que o tempo de fato passava, e é isso que sempre acontece. Só percebo o quanto era bom depois que passa. Mas tudo cresce, e esses meninos e meninas se vão. As crianças se vão e se transformam milagrosamente e tragicamente em homens e mulheres, todas elas. Não só essas minhas antigas crianças, mas todos os outros meninos e meninas. Se vão e viram homens e mulheres que geram outros meninos e meninas, e assim a roda vai girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando e girando...

Em frente à TV e às fotografias amarelas, tem um sofá marrom claro, de couro descascado, e é onde eu passo boa parte do dia, talvez lendo o jornal, ouvindo o pequeno rádio de pilha que eu carrego comigo o tempo todo, ou ainda fico só sentado, com a cabeça dela em meu colo, a cabeça grisalha e de pele enrugada que ela tem. Ela também já está com um bom tempo vivido, e nada mais é como era antes. Não me importo. Ela era bonita, antes. Ainda é bonita, mas é bonita de outro jeito agora. Nada mais é tão nítido em minha cabeça, mas lembro vagamente de seus longos cabelos negros, e a pele nem morena e nem branca que ela tinha. Talvez fosse de uma cor exata que a pele deve ter pra ser bonita. Os seios eram outra coisa desse jeito, no ponto certo, como se fosse alguma fruta madura em que eu pudesse pegar e me lambuzar todo sem medo de nada. As pernas talvez fossem mais brancas, um pouco diferente do resto do corpo, não tão diferentes, e eram assim por nunca terem sido expostas ao sol, pelo menos não muitas vezes. Na coxa havia diversos pelos pequenos, quase invisíveis, loiros, que se arrepiavam todos quando suas pernas eram acariciadas ou lambidas. Era bom, era bom. De qualquer forma, hoje não estão mais tão maduros assim, os peitos. Mas não me importo. Ainda são frutas maduras pra mim, e eu sei que por trás desses cabelos grisalhos, os antigos cabelos morenos ainda balançam com o vento e brilham expostos ao sol. Brilham. Brilham. Por trás desses peitos já gastos, o coração implorando por descanso, e a perna dos pelos não mais tão invisíveis, por trás de tudo isso ainda existe aquela fruta madura e aquele coração que disparava quando transávamos em pleno domingo à tarde. Tudo está bem ali onde estava. Só está velho, gasto e cansado agora. Mas está lá. No mesmo lugar de sempre.
Havia também alguns domingos em que nós costumávamos deitar na grama do parque, há muito tempo atrás - quando ainda tínhamos paciência pra essas coisas -, e olhávamos os velhinhos. “Você ainda vai me trazer no parque e deitar comigo na grama quando nós estivermos velhinhos velhinhos velhinhos?”, ela perguntava, não com essas palavras, mas eram palavras assim. Eu fazia que sim e nos abraçávamos, pensávamos em como seriam nossos filhos, e em como seria nossa casa e todas essas coisas que os casais costumam pensar. Num dia desses, de parque, comprei pra ela uma rosa, e em três dias a rosa murchou e ficou toda preta, soltando líquidos esverdeados por entre as pétalas mortas. Ela me perguntou como iríamos cuidar de filhos se mal conseguíamos cuidar de uma rosa. Falei que das rosas ninguém sabe cuidar, e isso começa pelo ato de apanhá-las de onde elas devem viver naturalmente e necessariamente, junto com todas as outras rosas, pra que não morram depois de três dias em uma estante de um quarto qualquer, solitárias, solitárias, solitárias. Cuidar de rosas é na verdade nunca apanhá-las. Nunca.
Hoje já não a presenteio com flores, a graça disso acabou, e eu e ela estamos cansados de ter que, toda vez, depois de três dias, recolher os restos mortais da flor de cima da estante do quarto.
De qualquer forma, eles já se foram, o menino e a menina. Já faz um tempo que se foram, que cresceram, e no começo era insuportável, quase impossível viver nessa solidão toda, embora não fosse ainda uma solidão por completo. Era solidão ao lado dela, e eles já vieram.

II

De vez em quando eu acordo cedo pra ir comprar pão na padaria aqui do bairro, na rua de trás. Vivo dessa taxa que eles dão pra quem fica velho. Taxa que o governo dá, seja lá o que isso for, governo. O que importa é que eu ganho todo fim de mês. Eu e ela ganhamos, e é o que nos ajudou a comprar o sofá, a TV, a cama, a máquina de fotografia – hoje inútil – e várias outras coisas que não são tão necessárias assim pra nossa sobrevivência.
Já não tenho amigos. Todos eles se foram ou foram sumindo conforme o tempo foi passando, e isso é uma coisa natural. Amigos irem embora, não pra morte, mas pra algum outro lugar, é uma coisa natural. Cada um segue a vida, ou o que eles chamam de vida, embora eu também não saiba se posso chamar a minha disso. O que eu quero dizer é que eles se vão, assim como tudo se vai, e no fim só nos resta essa coisa que eu costumo chamar de amor, mesmo eu não gostando desse nome, pois no fundo no fundo todos já sabem que hoje em dia usam esse nome em vão, amor. Antes não. Antes era sério, mas hoje não. É em vão, é normal, é natural.
Os Domingos de tarde mudaram. Esses domingos de tarde, aqueles mesmos Domingos em quais eu costumava transar ou deitar na grama do parque, esses domingos de tarde mudaram. Não tenho mais aventuras e nem tenho nada de interessante nesses Domigos, mas talvez seja por isso que eles são meus melhores dias. Tenho aquela paz, aquele clima de Domingo, clima que eu não sei explicar, mas mesmo que eu dormisse quarenta anos e acordasse num Domingo eu saberia que era Domingo, sem calendário e sem nada. Aquele clima. Clima bom. Gosto mais dos que não tem sol, e nem lua. A lua é boa de noite, mas de noite eu durmo, e não a vejo com muita frequência. Então gosto dos dias cinzas, dos que não são nem frio nem quente, nem claro nem escuro. Domingos de tarde, desses que nem chovem e nem fazem sol. Foi nesses dias, de Domingo de tarde, que nem chovem e nem fazem sol, nesses Domingos, que aconteceu.

III

Eu estava deitado no sofá, com os pés num braço do sofá e a cabeça no outro braço. Estava lendo o jornal, e ouvi de longe.

Barulho de campainha, passos em direção à porta, fechadura gira, porta abre.

“Ah, se não são vocês! Está tudo bem? Entra, entra!” Ela disse, minha velha. Houve algumas risadas e uns abraços, por parte deles, do menino e da menina. Ouvi alguns risos de criança, mas talvez fosse meu cérebro tendo alguma alucinação, o que estava se tornando comum. No dia anterior tinha visto - pensado ver - um gato amarelo pulando em minha cama e dizendo “Você vai morrer, você vai morrer, você vai morrer...” infinitamente. Infinitamente. Infinitamente. Mas não dei importância. Conforme fui chegando perto ele foi se desfazendo feito areia de praia e eu deitei e dormi.

Uma voz diferente, masculina, grave, em minhas costas.

- Pai, tá dormindo?

Era o Márcio. Menino que já não era menino. Meu menino, meu antigo menino. Ele já estava grande, alto, maior que eu. Tinha alguns pelos grossos saindo de seu rosto, e eu pensei comigo “Ele está com mais barba que eu”, e vi que a dele era preta, e a minha branca. A memória é vaga, mas talvez houvesse tido um abraço forte naquele momento de reencontro, um beijo no rosto, um “Mas como você está diferente”, e todas essas coisas assim.
Depois ouvi uma voz por trás. Voz doce, feminina. Não era minha velha, e deduzi que fosse a menina. Minha menina, minha antiga menina.

- Oi pai. Sou eu, Alice.

Alice. Alice. Alice. Era minha menina. Pequena antiga Alice. Ela tinha seios agora. Seios. Mulheres têm seios, mas ela era ainda minha menina. Mulher pro mundo, menina pra mim. Complicado de explicar, mas eu entendo facilmente. Era parecida com a mãe. Bem parecida. Todos os detalhes coincidiam, e eu fiquei feliz duas vezes. Uma por ver a menina, e outra por rever minha velha, como na época em que ela não era velha. Duas vezes. Feliz.
Mas o que mais me assustou, ou deixou mais feliz ainda, não sei bem. Foi o menino e a menina de verdade. Não o meu menino e menina. Menino e menina deles, do menino e da menina. Pode ser que esteja complicado de entender, mas eram os filhos dos meus filhos; meus netos. Menino era da menina. Menina era do menino. Eles eram bem pequenos, baixinhos, características típicas da minha velha, incrivelmente todos se pareciam com ela. Cabelos negros, peles brancas, e tudo mais. Me levantei do sofá pra ver os pequenos, e me deram abraços tímidos. Foram correr pela casa toda. Talvez o menino tenha corrido de braços abertos, imitando um avião e fazendo “vrum vrum” com a boca, numa tentativa de fazer o som de um aeroplano. Não sei ao certo se sonhei ou se de fato aconteceu. De qualquer forma, a menina era mais tímida. Não tão tímida, só um pouco, no começo. Depois a timidez passou, e ela até me ajudou a fazer panquecas, com a mãozinha toda melecada de mel e açúcar e essas coisas assim. Também lemos um livro, um pouco mais tarde. Era infantil, e eu lia alto pra que os dois ouvissem. Sentaram os dois em meu colo, cada um em uma perna, no sofá descascado. Foi bom.
Passamos o dia assim, Domingo de tarde. Ele estava cinza, sem sol e sem lua, nem frio e nem calor. Perfeito do jeito que os Domingos devem ser.
Faz algum tempo que eles não vêm de novo, os meninos e as meninas. Mas talvez eles tenham vindo, e eu tenha esquecido. Ando esquecendo muitas coisas ultimamente. Uma vez ouvi que eu tinha uma tal coisa na cabeça, Alzheimer. Nem imagino o que isso seja, mas sei que eu levo como uma coisa boa. Há tempos, agora, não vejo meu menino e minha menina, nem o menino e a menina deles. Aqueles dois quartos vazios agora já têm duas camas. Uma cama em cada um, uma rosa e uma azul, que é pras crianças, quando elas quiserem dormir por aqui. Talvez eles já tenham dormido algumas vezes, mas não me lembro. Talvez eu tenha sonhado, ou foi só coisa de minha cabeça. Sei que estou velho, farto. Essas coisas acontecem com velhos, e o lado bom disso tudo é que eu me surpreendo todas as vezes, sem exceção de nenhuma. Vejo os meninos e as meninas e os vejo como se fosse a primeira vez. Como se eu lesse o mesmo livro milhares de vezes e me impressionasse com o final em todas elas, de uma forma como se eu nunca tivesse lido antes. E é assim, cada vez que eles se vão. Cada vez sinto que se passa uma eternidade pra que eles venham de novo, e eu não me importo. A velha fica dizendo que todo fim de semana eles vêm, mas eu não acredito. Talvez ela esteja alucinada, talvez seja coisa da cabeça dela. Mas eu não. Eu sei do menino e da menina. Eu sei. Ela não. Eu sei.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Incondicional


Para ler ao som de:
Radiohead - Videotape

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...Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!”...

Eu já não me importava mais se a escova no banheiro estivesse repleta de cabelos seus e eu tivesse que tirar fio por fio antes de pentear os meus. As roupas sujas espalhadas pelo chão não mais incomodavam, e eu desviava peça por peça até chegar na pia e olhar no espelho sujo e manchado aquela minha cara coberta de máscara. Tinha já trocado meu perfume, minha pasta de dente, minhas roupas, não mais usava meias vermelhas e nem comprava camisas listradas, muito menos xadrez. Já não sabia se eu era eu ou você, ou outro alguém que eu nunca de fato conheci. Era simples; Você falava, estava falado, e pronto.
Você já não me entendia e exigia que eu te entendesse e mergulhasse de ponta-cabeça por entre sua vida e seus costumes e eu não estava muito pra coisas alegres naqueles tempos. Na verdade era aquela alegria alheia que infestava a tua casa, a cidade, as lojas, a padaria, você, teu pai, tua mãe, tuas irmãs. Aquela alegria alheia é que era insuportável, pelo menos naqueles tempos.
Lembro quando a gente brincava de ser triste. Você fingia que chorava e eu chegava devagar, tirava suas roupas lentamente e lambia tua cara e teus peitos e você gostava e a falsa tristeza passava. A gente contava um pro outro histórias e histórias e daí pra frente a tristeza virava alegria, mas era alegria de verdade, vindo de uma falsa tristeza. Era estranho, e eu gostava, mas depois de um tempo você não queria brincar mais. Não mais. Não brincava porque agora a tristeza não era mais de mentira, e quando a tristeza não é de mentira não dá pra gente brincar e nem fingir que está feliz. Fica por isso mesmo, na tristeza.
No começo era bom, sim. Era sempre bom quando a gente não se amava tanto. Eu te amava só um pouco, não muito. Gostava mais do meu cigarro, do meu diário, menos de você. Era uma coisa saudável, "Eu te amo, mas não tanto", "Eu também te amo, mas não tanto" e agora tudo mudou. Agora só conseguia dizer "Te amo eternamente e incondicionalmente por todo o resto de minha vida e trocaria qualquer coisa por você até mesmo eu mesmo e eu nem me importaria se eu não existisse pra que você pudesse existir". E você respondia assim desse outro jeito "Eu te amo incondicionalmente mas ainda resta uma condição, a de que você me aceite e aceite junto comigo todos os meus compromissos e tudo que eu prezo pra minha vida". E o incondicional passava a ser condicional e eu já não entendia mais nada e preferia acreditar que eu era o grande amor de sua vida e pronto. Mesmo sabendo que você tinha outras coisas e que amava essas outras coisas também além de me amar. Ninguém me avisou que junto com você viria tudo isso, e veio.
Veio mas meu problema era outro. Problema era eu te tornar um objeto, colocar meus braços em sua volta e te abraçar forte, pra que você nunca mais saísse. Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!” bem em meu rosto e eu era obrigado a te soltar. Eu pensava incessantemente “não sou canalha, não sou canalha, não sou canalha”. Não era canalha. Não. Parecia ódio, mas era só amor. Quis um dia te prender em minha cama pra sempre e te dar comida e banho e lamber tua cara e teu peito de novo e criar histórias e histórias e histórias, mas não deu.
Te queria como uma fruta. Fruta sensual e venenosa que você era. Me fazia morder desesperadamente cada pedaço e tomar cada gota do líquido que escorria pela sua polpa. Do teu gosto amargo eu só sentia o doce, e da tua textura áspera eu só sentia a lisa. Lisa como água, como mel, como qualquer coisa assim. Me iludia. Seu suco me envenenava pra depois me fazer sofrer, enquanto meu corpo desesperadamente ia tentando expulsar o veneno através de lágrimas ou de gritos, sempre à noite. E quando eu finalmente conseguia me curar e me sentir livre de você, era aí que você aparecia de novo e eu freneticamente mordia o teu corpo de fruta venenosa de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de nov, e de no, e de n, e de, e d, e...

Agora eu fico aqui, sentado em tua cama, chorando de verdade e fingindo estar chorando de mentira e triste de verdade e fingindo estar triste de mentira. Só assim você vem me alimentar e me banhar e lamber minha cara e meu peito e dizer que eu estou triste de verdade e que preciso brincar brincar brincar de ser feliz e que sou tua criança e você é minha criança e assim a gente cria histórias e histórias e eu já nem me importo mais. Sei que você também está triste de verdade e finge estar triste de mentira pra ter pretexto pra brincar de ser qualquer coisa menos de ser triste, e eu te entendo. Isso é confuso mas eu entendo. Te entendo. Antes me importava e não entendia, mas agora nem me importo mais, e entendo. Você sempre vem. Você sempre vem. E a gente já nem sabe se é feliz ou triste de fato. A gente nunca sabe, nunca soube.

Melhor é ficar na dúvida eternamente, incondicionalmente. Incondicional.


quinta-feira, 14 de maio de 2009

A Imóvel Ausência


Ela

...sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados...

Ela sabia falar bem, embora fosse criança, e tinha bons gostos pras coisas, praticamente pra tudo. A gente costumava passar na loja de roupas, e eu só sentava e esperava enquanto ela ia pegando, com suas mãos pequenas e delicadas, algumas camisas, calças, talvez uma gravata, meias, e eu a deixava escolher à vontade; Nunca me arrependi. Seus gostos eram realmente bons, e eu sempre a deixei à vontade.
Quando chegava em casa, no finalzinho da tarde, depois de me contar como havia sido seu dia e de como tinha se relacionado com os pequenos amigos de classe e com as professoras, sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados. Os desenhos eram praticamente os mesmos: Três bonecos coloridos de mãos dadas.
Em cima do boneco menor de todos – que ficava no meio dos outros dois – ela escrevia eu; no da direita com cabelos grandes escrevia mãe; e finalmente, no da esquerda, que carregava na mão de palito uma mala, ela escrevia pai. Atrás, em cima dos três bonecos, dava pra ver um círculo todo pintado de amarelo, com alguns tracinhos em volta retratando os raios do sol. Tinha também uma casa, daquelas simples – quadrada com telhado triangular -, e eu nunca entendia qual era o motivo das crianças terem essa mania de desenhos coloridos retratando a família. Ainda mais no caso dela, que não tinha mãe.

***
A mãe, meu velho amor:

Ela morreu no parto, meu velho amor. Como lembrança eu só tinha a minha pequena, que ela havia deixado pra mim, e era toda minha agora. A conheci quando eu tinha treze anos, e até o parto de final triste nunca havíamos nos separado.
Era bonita: Cabelos negros e lisos, olhos castanhos, dedos de pontas finas e pele branca. Seguimos à risca a doutrina que os padres costumam dizer nas cerimônias de casamento, até que a morte nos separe. E separou.

***

Às vezes ela brincava com meus cabelos enquanto eu assistia TV, minha pequena, e além disso, antes de dormir, a gente inventava histórias sem fim, pra poder continuar no outro dia como se fosse uma vida paralela ou ainda mais que isso: um reflexo de nossas próprias vidas. Uma vez ela me disse que nunca ia me abandonar, e que mesmo quando eu ficasse velho e fraco, nunca deixaria de brincar com meus cabelos.

Eu

...num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado...

Minha cama era grande, e fato é que nela só dormia uma pessoa, e essa pessoa era eu mesmo, embora nem sempre tenha sido assim.
Era evidente que um dia a casa havia sido pequena, sim. Aqueles dois quartos, a sala grande e a cozinha toda decorada com azulejos de flores azuis - tudo escolhido por ela. Aquilo havia sido pequeno um dia, pequeno pra ela e pra mim. Mas agora eu estava sozinho, e a casa tinha ficado terrivelmente grande.
Também já fazia um tempo que eu tinha parado de programar o despertador. Antes eu me importava com o tempo, mas agora tanto fazia acordar quatro horas da tarde quanto duas da madrugada, eu realmente não me importava. Joguei no lixo o despertador; percebi que ele não tinha mais utilidade. Tomando isso como rumo, tirei também o relógio amarelo que ficava pendurado na parede da cozinha, o vermelho que ficava na sala, e bloqueei os canais de TV que falavam as horas. Foram todos pro lixo, assim como deveria ser.
O que eu quero dizer é que num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado. Era a sua ausência. Nada mais me importava depois desse dia. Desde que ela tinha se mudado eu não conseguia me concentrar, muito menos limpar a casa e escolher roupas. Não comprava roupas há mais de três anos, não por falta de dinheiro, e sim pela sua ausência.
Tentei novos amores, mas eu já estava velho, e é difícil arrumar amor quando a gente fica velho. Não consigo entender por que é que o mundo é tão artificial, quase de plástico, todos vivendo na aparência, e só. Mas não me importava, queria mesmo era a minha pequena de volta, e também meu velho amor. Mas era impossível. A minha pequena tinha crescido, e o velho amor a vida tirou de mim.
Fumava mil cigarros por dia, e não havia álcool que dava conta de minha tristeza, desespero e solidão. Ela havia se mudado. Tomaram-na de mim.

Ele


...O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura...

Chegou sem avisar. Entrou pela porta da frente, ele e ela de mãos dadas, com um sorriso inconfundível no rosto. Me cumprimentou, sentou no sofá e ficou em silêncio. Sentei na poltrona e fiquei em silêncio também, olhando os dois e me preparando psicologicamente pra uma coisa que eu não sabia o quê, na verdade sabia, mas não queria saber.

O clima era intenso e minhas pernas se cruzavam e descruzavam de um lado para o outro e eu pensava em colocar um disco de música e desisti da idéia e depois pensei em servi-lo um café mas ele não merecia um café porque ele estava tomando minha filha de mim e eu não podia fazer nada e queria o matar por isso. Ele me olhava esperando alguma coisa de mim e eu não tinha absolutamente nada pra dizer e minha vontade era de insultá-lo e expulsá-lo da minha casa e prender minha menina de dezenove anos no quarto amarrada pra ela nunca poder fugir de mim. Aquele seu jeito de garoto inoscente me irritava e eu sabia que hora ou outra ele colocaria o sexo dele no sexo dela e trocariam fluídos e amores e eu ia ficar pra trás nessa história toda. Cuidei e tratei da minha pequena e a vi crescer, alimentei, moldei feito uma flor ou um quadro que eu achava a coisa mais linda do mundo, mas agora ela não estava mais em minhas mãos e sim nas mãos de um outro homem que não entendia nada de amor e assim como eu fui ele era também instintivamente dependente do ato sexual e da troca de fluídos intensos. E era com a minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

- Me fale um pouco sobre você - falei finalmente, com uma voz calma, tentando esconder a raiva e o desespero que estavam gritando furiosamente dentro de mim.

Era um rapaz novo, por volta dos dezenove ou vinte anos. Tinha um emprego razoável e parecia-me responsável. Mas isso não bastava, eu não queria nem um milionário tirando minha filha de mim. Ficamos trocando informações desnecessárias até que o que eu mais temia aconteceu. Apertaram as mãos ainda mais fortemente, e com aquele olhar de paixão e falso amor ele me disse:

- Vim até aqui pra pedir a mão de sua filha em casamento.

O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura e depois me recuperei e senti minha vista ficando branca e não sentia mais as pontas dos dedos. A respiração estava eufórica e eu sentia o ar passar por minha garganta feito pontas de faca rasgando do início ao fim tudo que eu tinha por dentro. Lembrei da minha pequena e de como ela me disse um dia que nunca deixaria de brincar com meus cabelos mesmo quando eu ficasse velho, e agora eu já estava velho e quase não tinha mais cabelos. A minha pequena desenhava a família colorida no papel e eu lembrava cor por cor e agora havia surgido mais um boneco invasor no papel amassado. Ninguém o convidou. A pequena cresceu e agora estava quase uma mulher e eu não podia fazer mais nada e ela não estava mais tão carinhosa assim e não escolhia mais minhas roupas nem brincava mais com meus cabelos, mas ainda era minha pequena. Ninguém tinha o direito de tirá-la de mim. Ninguém. Minha menina. Só minha. Só.

O Fim

Eles foram embora pela porta da frente e nunca mais os vi. Pra mim só sobrou essa casa terrivelmente grande e essa ausência que fica imóvel bem do meu lado. A ausência é da minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

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domingo, 10 de maio de 2009

Vermelho


Para ler ao som de:
Radiohead - Pyramid Song


Fase I

Era comum, embora desagradável, escutar ao longo do dia sua voz ecoando por toda a casa. Não que ele tivesse culpa - que na verdade ninguém tem -, mas seu jeito era assim, e eu não podia fazer muita coisa pra mudar. Aliás, não podia fazer nada.
A rotina era exata; Chegava do trabalho, entrava pela porta da frente, passava pela cozinha (onde minha mãe geralmente ficava), cumprimentava minha mãe com um beijo na boca, depois vinha pra sala de estar (onde eu geralmente ficava) e me cumprimentava com um beijo na testa. Depois disso ele tomava seu banho, e assistia TV pelo resto do dia.
Ele sabia ser gentil às vezes, o que não quer dizer que ele gostasse de ser, mas de qualquer forma fingia muito bem no começo.

Fase II

Começou a piorar, mas nada que fosse insuportável. A rotina, embora constante, já não era mais a mesma de antes; Entrava pela porta da frente, cumprimentava minha mãe e a mim com um simples aceno de mão, ou alguma frase do tipo “
oi-tudo-bem”, mal falada. Eu não conseguia entender qual havia sido o motivo da mudança, mas depois de um tempo não sentia mais falta dos beijos na testa nem de nada. Eu já estava mais velho, embora não muito, e quando a gente vai ficando mais velho aprende a lidar com diversas situações, se acostuma facilmente. O que eu quero dizer é que nesse tempo ele era uma pessoa fria, mas não chegava a ser arrogante nem desagradável. Era apenas frio, e eu me acostumei.

Fase III

Comecei a sentir, finalmente, as conseqüências disso que eu nunca causei. Experimentei a sensação de ser rejeitado, talvez mal-tratado, ignorado, e qualquer coisa assim. De frio, havia agora passado pra arrogante, quase insuportável.
Entrava pela porta da frente, já de cabeça baixa e falando sozinho - talvez reclamando de alguma coisa que só ele sabia-. Ao invés de cumprimentar, ele preferia insultar. Lembro do primeiro dia de mudança de fase;
Sua-vaca-mal-lavada, foi o que ele disse, assim, sem mais nem menos, à minha mãe, logo quando entrou pela porta da frente. Simplesmente olhou pra minha mãe e disse isso. Ainda nesse dia, logo em seguida, caminhou em minha direção, olhou bem no fundo dos meus olhos, e começou o discurso: “Por que você não toma vergonha nessa tua cara e vai trabalhar, fazer alguma coisa de útil nessa tua vidinha, em? Acha que eu te criei pra ficar pintando quadros, rapaz? Você acha que essas tuas pinturas de bicha vão te trazer alguma coisa, em? E aquele seu diariozinho de merda? Eu sempre o leio, viu? E de todas aquelas porcarias escritas, nunca achei uma que prestasse, sabia? Seu vagabundo. Eu com tua idade já ganhava meu próprio dinheiro, seu escroto. Com tua idade eu comia tua mãe, aquela vadia que tá na cozinha agora, e foi quando eu a engravidei. Toma vergonha nessa tua cara, seu bichinha... ”.
Não sei. Lembro que ele me sentou no sofá à força, e enfiou um charuto na minha boca. Disse “
Trague”. Perguntei qual era o motivo, e recebi de novo a mesma ordem. Sem saber o que fazer, traguei, e foi a vez que mais tossi em minha vida inteira. Claro que não havia vivido muito tempo até então, pois tinha no máximo doze anos. “Me prova que você é homem. Não agüenta com um charutinho? Agora vai experimentar isso. Toma”, e colocou na minha frente um copo de cachaça. Coloquei tudo pra dentro, forçado, sofrendo, e quando fiz cara feia, ele me fez tomar tudo de novo. Embriaguei-me acidentalmente, e dormi ali mesmo, no chão da sala.

Fase IV

Agressões físicas, a mim e à minha mãe. Eram constantes, praticamente todos os dias, a não ser pelos dias que ele não voltava pra casa. Provavelmente passava as noites em algum bordel, ou o que quer que seja. Mas quando voltava, agredia a gente sem motivo nenhum, como se fosse um prazer ou um hobbie. Teve tempos em que ele me batia com uma vara de pescar, e também com chicotes de couro, que eu nem imagino onde ele havia arrumado.
Em minha mãe eram coisas mais pesadas, talvez pedaços de pau, pedras, ou mesmo chutes, socos, e coisas ainda mais criativas, dependendo de seu humor, ou da quantidade de cachaça, entorpecente, ou qualquer coisa que ele tivesse mandado pra cabeça.
Diversas vezes ouvi, “
Filho, não esquenta não, tá bem? Logo a gente sai dessa vida, só espera a mamãe ser promovida no trabalho, aí a gente sai daqui pra bem longe, viu? Não responde nada, não. Deixa assim, como está, dê a razão pra ele sempre, talvez assim um dia ele canse.”, ela dizia, minha mãe. Sempre a escutei com toda atenção, e por muito tempo a gente aguentou os socos e pontapés de meu pai.
A gente também via os pequenos rastros de sangue seco, que já havia infiltrado nas paredes e em uma boa parte do piso da cozinha. Ele nunca se cansou. Nunca. A quantidade de sangue seco só aumentava, aumentava, e aumentava a cada dia. Pensei na possibilidade de limpar tudo e deixar novamente as paredes e o piso brancos, assim como eram e assim como tinham que ser. Mas não. Se eu limpasse, no outro dia estaria do mesmo jeito, ou até pior, portanto a gente nunca limpava. Ficavam ali, aquelas manchas vermelhas em diversos formatos. Lembro que num canto tinha uma que parecia um elefante, o formato, e era a que eu mais gostava.

Fase V (Final)

Barulho de porta; ele havia chegado. Ficou um tempo parado em frente à entrada da cozinha, talvez uns quatro minutos, encarando minha mãe com os olhos vermelhos, talvez de algum álcool, raiva, não sei. Sua respiração estava ofegante, como se ele tivesse corrido trezentos quilômetros fugindo de uma tropa de exercito, sem parar. E foi quando eu a vi, a pistola. Era uma 38, daquelas antigas, mas era evidente que funcionava perfeitamente. Escutei o
cleque do gatilho, e logo em seguida cinco disparos, que foram bem no meio do rosto de minha mãe.
No delicado lugar onde um dia se encontravam os belos olhos verdes, a pele branca e os cabelos castanhos lisos, agora só se via um grande vermelho. Não houve gritos, nem gemidos, nem nada. Cinco disparos; corpo caído no chão; morte.
Nesse momento corri em direção à cozinha, e ele estava com os olhos ainda vermelhos, e a pistola na mão direita, já abaixada. Estava parado, imóvel, olhando aquele rosto desfigurado que um dia foi de sua menina. Me veio uma sensação de morte, aquele característico cheiro azedo que a gente costuma encontrar nos funerais e nos enterros. Eu obviamente sabia, ela estava morta.
Sem pensar, agarrei no pescoço de meu pai com a força de homem crescido que eu já tinha, e ele nem sequer reagiu. Derrubou a pistola no chão, e foi nesse momento que o senti desistindo de tudo. Fechou os olhos, bem devagar, ficou cada vez mais vermelho - não só os olhos, mas o rosto inteiro-, e eu não soltei seu pescoço em nenhum instante, até que já o havia matado. Ele caiu no chão, bem do lado do corpo de minha mãe. A posição coincidiu com a que eles costumavam ficar, antes de dormir, havia muitos anos atrás, quando eles eram estupidamente apaixonados, e quando eu era ainda uma criança. Mas agora, de todo o sono, tinha só morte. A criança cresceu, o sonho acabou, e terminamos assim.
Olhei pro chão da cozinha, e eram meu pai e minha mãe mortos. Como um breve e estúpido conformismo, preferi acreditar que tudo havia acabado para um bem maior; minha mãe havia parado de sofrer, e eu estava livre de toda tortura. Sobre meu pai, bem, eu nem me importei.

Sobre o fim da Vida e da Morte

O vermelho na cozinha era intenso, e não era o vermelho das antigas manchas de sangue seco, nem das maçãs e tomates que repousavam silenciosamente sobre a mesa. O vermelho era de sangue; puro sangue vivo. Escorreu lentamente por entre meus pés descalços, dançando feito uma cobra, e foi descendo aos poucos pelo pequeno ralo que havia ali no chão. Aquele sangue – a vida de minha mãe - escorria pelo ralo, como se nada estivesse acontecendo, e eu já sentia o cheiro de carniça e de morte inundando a casa do início ao fim. Por alguns instantes eu me perdi, fiquei imóvel diante da morte dos dois corpos que me deram a miserável vida que eu tinha, e por fim estavam indiferentes um ao outro, e indiferente também à minha presença. Sentei no chão, junto do sangue e dos corpos imóveis, debrucei-me sobre o peito encharcado e vermelho de minha mãe; Chorei.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Um Amor Inventado



- Aí, vadia, quanto que é?

- Hey garoto, que é isso? Quem você pensa que é, pra vir assim, sem mais nem menos, e falar comigo desse jeito?

- Calma, só perguntei. Quanto que é, em?

- Não me olhe com essa cara. Não é minha culpa que você cismou com minha bunda e quer colocar suas coisas nela. Eu vou te dar depois, mas por enquanto não, to afim é de zombar da tua cara, agora.

- Zombar da minha cara? E por que você faria isso?

- Quem são aqueles ali, alegres feito uns idiotas?

- Meus amigos...

- Ah, amigos... Sabe o que eles vão fazer com você? Quando você encher essa tua cara fofinha de vodka e tequila, vão te deixar no chão, babando e tremendo, e vão cada um pra suas casas, como se nada tivesse acontecido.

- Eles são meus amigos de verdade, não são desse tipo...

- Claro, você paga tudo pra eles. Quem não é teu amigo, playboy, me diz?

- Deixa pra lá... Tem um cigarro?

- O quê? Você fuma?

- De vez em quando.

- Tá bem, toma a porcaria do cigarro.

- (tosse)

- Tossindo? Há-há, tossindo!? Não precisa mostrar bonito pra mim se você nunca fumou antes. Eu vou dar pra você de qualquer jeito, garoto, mas espera, não agora. Por falar nisso, são noventa e seis reais.

- Noventa e seis reais!?

- Você acha caro? Acha que eu sou puta de rua, daquelas neguinhas que chupam pau de caminhoneiro? Há, boy, nada nunca foi caro pra você, esqueceu? De puta de rua não tenho nada.

- Eu só estav..

- E pra que você veio pra cá, afinal, em?

- É que eu nunc...

- É virgem, ah, sim, imaginei... E o que quer que eu faça por você?

- Agora?

- Não, não agora, playboy. Estou falando mais tarde, o que você quer que eu faça?

- Seria bom co...

- Tá bom, faço com a boca sim, mas só pra você, em garoto? Não vai sair por aí espalhando pra meio mundo que a “coroa vadia” pagou umazinha pra você, em?

- Eu não ia falar isso. Você é que não me deixa terminar de falar...

- Você é bonitinho, e além do mais é tão estúpido, tão criancinha, sabia?

- Você vai ficar aí falando, ou o quê?

- Tá, tá, vamos logo com isso. Agora para de falar, e me deixa entrar na porcaria do carro.

- Mas e os...

- Manda teus amiguinhos irem embora, não quero olhar pra cara deles.

- Mas...

- Espera até a gente chegar lá, aí você fala o que quiser, entendeu, boy? Agora, só dirige.

- Tá bem... Mas lá, onde?

- No motel. Você vai pagar motel pra gente.

- Vou?

- Vai.

- É porque eu reclamei do preço, que você tá assim, nervosa?

- Não estou nervosa. Já estou te dando um desconto, boy. Você quer me comer de graça, é?

- Eu n...

- Há, sim, todo mundo quer. Agora fecha essa boca.

(Já no motel)

- Ok, pode falar agora, playboy, e enquanto fala, já vai tirando essa roupinha de bicha que eu não tenho muito tempo.

- Mas calma, não é ass...

- Tá com vergonha, é? Eu tenho cara de quem tem o dia inteiro pra ficar aqui com você? Vai logo com essa roupa, garoto.

- Tá bom, tá bom... calma...

- Bonito aqui, esse lugar. Você é o primeiro que me traz aqui, sabia, boy?

- Mas eu não trouxe... foi voc...

- Você que vai pagar, então é você quem trouxe.

- Pode ser, então.

- Que é isso? Tá esperando o quê? Você acha que essa coisinha mole vai entrar em algum lugar?

- É que...

- Tá, já sei...Talvez se eu fizer isso melhore... está melhorando?

- S-si-sim...

- E isso?

- Melhor ainda...

(instantes depois)

- Curtiu, playboy?

- Sim, muito, mas agora tenho que ir embora... tá ficando tarde.

- Ir embora? Não, não, por favor, boy! Fica!

- Quê?

- Eu não cobro nada, mas fica, fica aqui comigo!

- Como assim, ficar aqui com você? Você tava toda mal-humorada, dizendo que tava sem tempo...

- Eu menti. Não aguento mais isso, boy... Estou cansada!

- Não aguenta mais o quê?

- Chega sempre algum cretino, come a minha bunda no fim do dia e vai embora como se nada tivesse acontecido... estou cansada disso.

- Mas você é uma puta, e as putas fazem isso, não fazem?

- Fazem, mas olha pra mim, playboy. Já estou nessa vida há muito tempo... longe de casa, sem amor, sem nada...

- Imagino...

- Fica aqui... a gente abre um vinho, acende essa porcaria de lareira, já que tá esse friozinho...

- Mas e amanhã?

- Amanhã você pode ir embora, se quiser... Mas agora passa a noite aqui comigo, a gente finge que se ama, e eu pago você amanhã, noventa e seis reais.

- Mas é eu que tenho que pagar, não é?

- Vem aqui, finge que me ama, que eu sou teu amor... Fala coisas bonitas pra mim, igual naqueles filmes idiotas... e eu pago pelo serviço.

- Serviço?

- As pessoas compram meu corpo, e hoje eu quero carinho, quero me sentir mulher, honrada... então eu o compro. Você faria isso por mim?

- Mas...

- Vem aqui, playboy. Entra aqui, debaixo dessa coberta comigo... a gente dorme abraçadinho, talvez eu te conte algumas histórias...

- Está bem...

- Isso! Assim, boy. Continua deitado, aqui, do meu lado... Te amo tanto, garoto.

- Te amo... é assim que você quer?

- Isso, agora pega na minha mão, faz carinho...

- Assim?

- Isso, playboy... Agora nos meus cabelos... Isso...

Fade Out

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segunda-feira, 4 de maio de 2009

O Quarto 74


Foi depois de ficar parado um bom tempo em frente à entrada principal, que resolvi entrar. Como qualquer outro hospital, aquele tinha um cheiro característico, que me lembrava um pouco o cheiro daqueles produtos de limpeza, e no meio desse cheiro era possível sentir algum outro que vinha da tristeza, ou do tédio, talvez do desespero das pessoas dali. Fui caminhando lentamente, analisando cada detalhe - As paredes brancas mal lavadas, as cadeiras de rodas com acentos de couro descascados, talvez couro podre, se é que, assim como a carne, o couro apodreça.
O silêncio alimentava o cheiro de desespero, e por entre esse silêncio eu ainda conseguia escutar uns leves ruídos, talvez de sapatos brancos de médicos caminhando à sala de espera para dar alguma má notícia à alguém, mas não tinha idéia de onde vinha, o ruído. Agora, uma enfermeira.

- Pois não, moço? - Ela disse, olhando pro outro lado, pensando em alguma outra coisa qualquer.

- Eu sou o Sérgio, liguei agora há pouco avisando. Sabe se ela já está aqui, minha irmã?

- Sei não. Olha, o quarto é no fim do corredor, o número 74. - Saiu, com pressa e sem se despedir.

No percurso até o fim do corredor, havia diversos outros quartos, com o mesmo cheiro de hospital e com o mesmo silêncio. Lembro que naquele exato momento, enquanto eu olhava quarto por quarto, um paciente tinha morrido. Eu parei. Talvez por curiosidade, ou qualquer coisa assim. Era uma criança, deitada, imóvel, sem respirar. Dava pra ver, pela feição intacta, que aquela garotinha havia passado por muito sofrimento, logo no começo da vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro. Além da morte, havia o branco intenso no quarto e, aliás, em todos os outros quartos. Naquele momento desejei um hospital colorido, com cada azulejo de uma cor, as enfermeiras de rosa, outras de azul, os médicos de amarelo, e a garotinha, ao invés de pálida, com a pele rosada, assim como deveria estar.
Em volta dela tinham três pessoas, imagino que fossem os pais, e talvez um irmão. A mãe, de lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha a abandonado havia muito tempo. O outro garoto, o irmão, estava sentado no chão, manuseando uma miniatura de carro - única coisa que não era branco no quarto, era amarelo -. Imagino que naquele momento o garoto nem imaginasse o que estava se passando, e sinceramente, é bem melhor nunca saber de nada. Bom mesmo é criar um mundo imaginário, entrar num carro amarelo e percorrer o mundo inteiro, e tudo isso dentro de um hospital, com a irmã morta bem do lado. Por vezes quis não saber de nada, não me preocupar, só viver, e mais nada. Ele não sabia de nada. Finalmente, o pai. Ele estava com o braço direito envolvendo os ombros de sua esposa, sem chorar e sem nada, embora, por dentro, ele estivesse quase explodindo, ou talvez pensando em se jogar pra fora da janela. A porta do quarto foi fechada ao perceberem minha presença. Não os culpei por quererem um pouco de tempo sozinhos, naquele momento tão raro. Não tinha o direito de culpá-los, nem de nada.

- Sérgio! - Escutei uma voz vinda por trás. Era Ana, minha irmã. - Desculpe, estou atrasada. E como tá?

- Cheguei agora também, ainda não o vi.

Caminhamos lentamente até o quarto 74. O corredor era bem grande, e os quartos eram ordenados numericamente. Estávamos, naquele momento, em frente ao quarto 13.

- Por que acontece, será? - Falou, olhando pro chão.

- Nem imagino. Estou apenas deixando pro tempo o que é coisa dele. - quis abraçá-la, mas não o fiz.

- É tão difícil. O que a gente fez pra merecer? Essas coisas são injustas. Tanta gente ruim no mundo e é a gente que paga, sem ter dado motivo nenhum? - Vi um brilho em seu rosto, mas era só lágrima, a tristeza saindo desesperadamente pelos olhos, andando lenta pela face, e transformando tudo em angústia, pra depois se desfazer no chão feito gota d´água, assim, como se nada tivesse acontecido.

Eu não sabia o que responder, então fiquei em silêncio, respeitando sua tristeza, embora eu estivesse exatamente do mesmo jeito. Agora era eu e ela, minha irmã, no mesmo corredor. De barulho só havia os nossos próprios passos, e o delicado barulho - quase inaudível - de lágrima se espatifando no chão.

- 74, é esse - disse enquanto enxugava, delicadamente, cada gota que havia saído de seus olhos.

Ficamos um tempo ali, olhando para aquela porta, que por acaso era branca. Por um minuto eu me perdi, pensei em desistir, sair correndo e voltar pra minha casa, gritando e libertando tudo de ruim que estava bem no meu peito. Eu sentia como se ele - meu peito - fosse explodir, como se tivessem o enchido com cem batatas, mesmo não havendo espaço nem pra duas. Queria pedir socorro, mas não tinha quem pudesse me ajudar, nem apoiar, nem nada. Era uma situação delicada, aliás, delicadíssima. Olhei pro lado, Ana estava imóvel, olhando incessantemente para o número 74, bem em cima da porta. Foi nesse momento que a porta se abriu.

- Olá, sou o Dr. Flávio. Vocês são Sérgio e Ana?

- Sim, somos - Respondi, serenamente.

- Imagino que a situação já tenha sido explicada, mas de qualquer forma, aconteceu hoje, às cinco da manhã. Seu pai já estava fraco, era improvável que aguentasse mais uma cirurgia tão complexa. Não houve dor, morreu enquanto estava dormindo. Sinto muito. - Saiu andando, com o típico jeito frio que os médicos costumam ter, e um papel na mão, fazendo anotações.

Eu o vi ali, deitado, imóvel naquela cama. Dava pra ver, pela feição intacta, que ele já havia passado por muito sofrimento, nesse fim de vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro.
Comecei a lembrar de tudo que a gente havia passado juntos. Ele que me ensinou a ler, escrever, e mexer na velha máquina de datilografar. Era curioso o jeito dele de me ajudar. Quando eu estava muito triste - muito mesmo -, ele não tentava me deixar feliz, nem nada. Ele deitava do meu lado na cama e se entristecia junto comigo. Chorávamos feito duas crianças, e ele nem sabia o motivo. "Eu fico triste com a tua tristeza", ele dizia. Isso me confortava mais que qualquer coisa. Não o fato de ele ficar triste, mas sim a certeza de que ele era meu único amigo, embora eu conhecesse centenas de pessoas que se diziam "amigos". Foi também quem, com enorme paciência, me contava histórias por todas as madrugadas de sábado pra domingo. Um dia me contou como conheceu minha mãe - também já falecida -, e contou detalhe por detalhe. Ele disse que a boca dela tinha gosto de morango com açúcar, e que os cabelos lisos e pretos pareciam com as cachoeiras de onde eles costumavam acampar, quando jovens. Contava da pele branca. "Era cor de leite sem ser pálido. Um branco bonito", ele dizia. Conheceram-se na escola, bem novinhos, e ficaram juntos até que a morte chegou em nossa casa. Mamãe havia morrido. O que eu sei é que era amor, e dos grandes. Eu gostava dele, do meu velho.

Ana não aguentou. De lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha nos abandonado havia muito tempo. Envolvi, com meu braço direito, os seus ombros, sem chorar e sem nada. Pensei em fugir, talvez me jogar pela janela, e foi nessa hora que vi um rapaz, parado, olhando pra gente. Continuou ali sem falar nada, e foi então que eu o chamei pra dentro do quarto. Era o pai da garotinha. Choramos - Eu, Ana, e ele - até o fim do dia. Ele por não poder ser pai, e eu por ter perdido o meu, assim, tão de repente.

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Ganhei o selo da Carol, autora do blog Por Escrito.



Vai para José, ótimo escritor e autor do blog Vítimas do Tédio


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