domingo, 28 de junho de 2009

Ensaio Sobre a Casualidade



...Avistou pela janela o vulto sem ginga no meio da multidão, andando de mãos no bolso e ficando cada vez mais longe, pequeno, pequeno. Não devia ter feito isso, pensou. Pensou e ignorou...


Infância

Reunião de amigos, festa de aniversário e todos as pessoas do colégio foram convidadas. A garrafa girava, lenta, no chão de madeira pertencente ao quarto de Ana.

– Verdade ou desafio? – Ana perguntou a Maurício, após a garrafa ter parado com o fundo apontado para ela e a boca para ele.

– Desafio. – Ele disse, com o típico nervosismo infantil, pertencente a um garoto introvertido, quase sem amigos, se não fossem aqueles.

– Finalmente um desafio... Vá para a garagem, você e Beatriz, fiquem lá por no mínimo dez minutos. Detalhe: Com as luzes apagadas.

E da roda de amigos levantaram-se Beatriz e Maurício, andando em direção à escada dos fundos, que dava para a garagem. As duas crianças, ditas crianças, onze-doze anos, cujos interesses eram apenas de diversão e não tinham ainda idade para o amor, e talvez ninguem de fato tenha. Nunca. Desceram as escadas sem palavras, e o nervosismo de Maurício já estava o causando tremedeiras, assim, de um jeito como qualquer outro garoto de sua idade ficaria. Beatriz já não estava tão nervosa, não por fora, embora por dentro estivesse quase explodindo de desespero, sem saber exatamente o que fazer.

– E estamos aqui... – Ela disse, já na garagem.

– P...pois é. – Ele respondeu, gaguejando, ainda tremendo.

– Hum...

– Bem... Eu nunca... – Numa tentativa de dizer que nunca havia, como dizem, beijado.

E foi quando os dois ficaram em silêncio, até que, num movimento quase intacto, as cabeças foram se aproximando, num tom de dúvida, indo e não indo, e daí o beijo. Não que fosse um beijo de fato, mas sim um encosto de lábios que, quando crianças, as pessoas costumam chamar de beijo. Sem fechar os olhos, sem abraços e sem ternuras. Apenas um encosto de lábios, encosto aquele que rendeu a Maurício ao menos um mês de pensamentos alheios, no banho ou na cama, antes de dormir, enquanto explorava seu corpo, sem que enjoasse da cena do rosto de Beatriz e da textura de seus lábios.

Adolescência

A roda de amigos cercando a mesa de centro, que carregava em si as carreiras, as brancas, das quais são inaladas como alguma coisa qualquer, comida ou sexo, num ritual místico de entorpecimentos. Garotos e garotas se divertindo, os que não conseguem ainda tentando, ao som do blues americano, que era para o clima, como diziam. Dessa vez Jimmy Hendrix, Red House, após Ana, Maurício, Ricardo e Betinha terem entrado no ritual.

– É tua vez, Beatriz. – Ana disse, apontando para o amontoado de pó branco exposto à mesa.

– É que eu nunca...

– Sem essa... larga de frescura.

Ajeitou os cabelos vermelhos, posicionou-os atrás das orelhas, e ainda segurando-os, ela abaixou a cabeça, unindo-se ao ritual. Inspire tudo, ouviu alguem dizer, e assim o fez. De repente já não estava mais ali. Como um orgasmo vindo nos pés para a cabeça, não necessariamente nessa ordem, ela repentinamente deixou de se importar com qualquer outra coisa no momento. Olhou as pessoas na sala de estar, todas elas, dezessete anos, alguns talvez dezoito-dezenove, uma a uma, olhou sem de fato olhar, apenas percebendo as imagens, como um cinema mudo ou psicodélico. Sentiu uma mão em sua nuca e não se importou. A mão desceu pelos peitos, talvez houvesse tido algum toque nas pernas, já não se importava. Ela cedia.

– Vem aqui garota – Ana disse, sussurrando em seus ouvidos – vem que eu quero te mostrar uma coisa.

Foi guiada até um cômodo que deduziu ser o quarto da casa, talvez pertencente à Ana, já não sabia mais, embora fosse o mesmo onde havia estado a alguns anos atrás – Maurício, a garagem –. Foi deitada na cama de lençóis vermelhos. Não que estivesse inconsciente ou inabilitada para ser guiada dessa maneira, mas estava num estado tão agradável e distante que não mais conseguia se importar com alguma coisa. Ana já por cima de seu corpo, ainda movendo lentamente as mãos pela sua barriga, fazendo com que a camiseta levantasse e a roupa íntima ficasse exposta. A pele era branca, e os peitos ainda mais, foi ver depois.

– Você gosta? – Sussurrou novamente, e Beatriz, sem pensar, talvez porque já soubesse, fez que sim com a cabeça, já de olhos fechados.

As roupas foram removidas, uma a uma, primeiro a camiseta, precedido da calça jeans, as roupas íntimas, primeiro a de cima, depois a de baixo, até que ela se encontrou nua, junto com a outra, também nua, as pernas abertas, os dedos de Ana entrando e saindo e os beijos ainda no pescoço, sempre por parte de Ana e nunca por parte de Beatriz, que apenas cedia mais e mais, e depois a boca de Ana por entre suas pernas, que estavam já abertas ao máximo, mesmo ela tentando abri-las ainda mais, até que, em alguns minutos, talvez quinze-vinte minutos, já não sabia, a porta do quarto se abriu e houve algum outro corpo, talvez Maurício, talvez Ricardo, que começou a penetrá-la, após te-la acariciado, e ela não mais se importava, enquanto Ana delicadamente acariciava ambos os corpos, a dança, a dança, a dança, a música na sala, o sexo no quarto. Ainda houve alguma dor, talvez bem de fundo, quase imperceptível, uma dor até quase agradável, talvez agradável ao juntar-se com as outras sensações, a do suor, os hálitos de cigarro de cereja, os restos de cocaína que incomodavam o nariz, já dormente, o gosto amargo descendo do nariz pela garganta, as penetrações, de dedo e de sexo, o calor, o cheiro, e por fim o sangue, sinal da agora impureza, que definitivamente ela não se importava em carregar, e então os líquidos, os vindos de Ana e o outro masculino, branco, precedido do sono, o sono pesado que durou até a manhã seguinte.

Maturidade

As brincadeiras de garrafas já haviam virado jogatinas na noite em uma esquina qualquer, e a cocaína não lhe servia mais para nada, o que fez com que as agulhas de heroína a penetrassem agora em qualquer veia que fosse possível, talvez axilas, ou quaisquer lugares que não fossem expostos aos clientes, o que faria o preço abaixar. Setenta e seis reais por noite, sem sexos adicionais, e sem contar as outras taxas. Não que ela contasse que fosse de programa, assim, de repente. Deixava isso para o final, já que sabia escolher bem, conhecia de todos os tipos.

– Whisky, por favor, daquele ali, o Ballantine´s. – O homem disse à atendente, enquanto estava sentado no banco alto, o cotovelo apoiado no balcão.

– Aqui está, senhor.

Do outro lado as duas, Ana e Beatriz, juntas, na noite fria de São Paulo, barzinho qualquer, para os lados da Augusta, não exatamente ali, olhavam naquela direção, reparando o homem de jaqueta preta no balcão, ainda sozinho, esperando alguma coisa acontecer.

– O que você acha daquele ali? – Ana perguntou, apontando o homem.

– É... aquele parece bom...

– Claro que é bom. – Ana disse, antes de ficar alguns instantes em silêncio – Talvez você devesse tentar....

– É...

– Mas não faça parecer artificial.

– Sim... está bem, vou tentar...

E foi quando ela andou em direção ao homem. Os saltos altos, a saia vermelha que cobria sua nudez, diretamente, não vestia roupas íntimas. A blusa curta, parte dos peitos à mostra, não tudo, rendia mais dinheiro. Desviou de um grupo de rapazes que estavam jogando poker na mesa verde do canto, continuou. E lá vou eu de novo, pensou. Talvez estivesse cansada, talvez não, poderia ser só tristeza, descaso, já não mais sabia. Sentou no banco ao lado do homem. Acho que estou sendo casual, pensou novamente.

– Me vê um Martini, por favor. – Disse à atendente, enquanto arrumava os cabelos vermelhos. Reparou no pulso do homem. Seria Rolex, Mont Blac?, pensou.

– Aqui está. – A moça disse, após preparar a bebida.

Deu um gole e cruzou as pernas, esperando alguma atitude do homem, até que, finalmente, o escutou:

– Olá. – Ele disse.

– Oi... – Respondeu, olhando para o outro lado, cabeça parcialmente erguida, fingindo desinteresse.

– Eu sei o que você faz.

Como um susto, ela olhou para o rosto do homem de repente, surpresa.

– O que foi que disse?

– Você. Eu sei o que você faz.

– Sabe?

– Sei... já está estampado bem em seu rosto, e eu vou direto ao assunto.

Acho que eu não fui casual, ela pensou.

– É... é que...

– Eu quero que você seja casual, coisa que até agora você não conseguiu. Mas escuta bem, essa casualidade vai depender bem mais de mim do que de você.

– Não consegui mesmo?

– Eu já logo percebi, você e tua amiga olhando para cá, apontando, imaginei que uma das duas iria vir. Mas escuta, não é esse o ponto. Já que quer casualidade, eu te pago e você faz o que eu quero, está bem?

– S... sim... está bem – Disse, já perdida, sem saber exatamente como agir.

– Eu quero que você me dê seu endereço.

– Como assim, meu endereço?

– O lugar onde você mora.

– E você espera que eu passe meu endereço, assim, para qualquer um?

– Tome. – Tirou do bolso um pequeno bolo de notas, contou duzentos e cinquenta reais, a entregou – Eu te pago metade antecipado, agora.

– Bem... é que não é exatamente isso o que eu faço. – Disse, após ter aceitado o dinheiro.

– Pois então faça... quer mais? – Retirou mais cem reais, estendeu a mão esperando que ela pegasse. E pegou.

– Tudo bem... – Ele não deve ser qualquer um, tem muito dinheiro, pensou. – Diga o que quer que eu faça.

– Eu quero casualidade. Se nunca o fez antes, faça disso um ensaio.

– Um ensaio sobre a casualidade?

– Nomeie-o como quiser. O fato é que eu quero entrar em tua casa, sem que você saiba, como um estranho.

– Sim... e?

– E você faça as tuas rotinas normais do dia-a-dia. Vou aparecer a qualquer momento, provavelmente à tarde, e você não vai interromper nenhuma de minhas atitudes quando eu já estiver lá.

– Acho que posso fazer isso...

– Uma última coisa: Deixe a porta destrancada, vou entrar sem avisar.

– Bem... é que... – Ficou em silêncio por alguns segundos, pensativa. – Está bem, está bem. – Retirou da bolsa um pedaço de papel e uma caneta, anotou o endereço e o entregou. – Está aqui. Amanhã, correto?

O homem deixou o dinheiro da bebida no balcão, levantou e partiu, sem responder e sem se despedir.

Ensaio Sobre a Casualidade

Ele abriu a porta, quase não abrindo, devagar, e ainda enquanto estava entreaberta, olhou o lado de dentro da casa e avistou-a de costas, Beatriz, semi-nua, lavando alguns pratos e copos sujos que repousavam em cima da pia. Preocupava-se principalmente em não fazer barulho, e então caminhava lento, quase parando, como um assassino prestes a esfaquear a vítima, não sendo um. Ela de costas, fazendo que não havia percebido, como se não tivesse ainda notado a presença anônima vinda por trás, talvez para fingir estar surpreendida quando ele a tocasse. E tocou. Chegou lento, primeiro a mão direita nas costas, acariciando como quem poem mão em lenço de seda, e em alguns instantes os lábios já alcançavam o pescoço feminino e branco, depois de afastar os fios quase vermelhos de cabelos lisos e sujos, de faxina. Em alguns lapsos de tempo, já nua, sem saber por quem, sem saber com quem, os dois deitaram-se no amontoado de cobertores no chão – por improviso a cama – e as pernas femininas se abriram, o corpo por baixo, o suor junto com a saliva e os fluídos de baixo misturaram-se numa coisa só, num ritual de dança de estranhos, movimentos repetitivos de ida e vinda feito maquinaria de trem, no silêncio, entre o suspiro do respirar e o grito do gemido. Entre a carne e a solidão a dois. A sós, cada um em sua própria solidão.

– Tudo bem... pode ir embora agora, já fiz o que você quis. – Ela disse, enrolando uma toalha improvisada em volta do corpo, após o ato, numa tentativa quase falha de cobrir sua nudez.

Sem palavras e sem feições, ele então vestiu a calça jeans, já usada pelo terceiro dia, junto com a camiseta branca e a jaqueta preta, mesma do dia anterior. As botas marrons e o andar calmo e sem ginga, típico. Típico dos solitários. Solitários e ricos que vagam aos ventos. Deixou a outra metade em cima da mesa, trezentos e cinquenta reais.

– Até um dia desses. – Disse, já de partida, de costas para ela.

Não houve respostas, e nem era preciso. "Acho que não", ele entendeu apenas pelo olhar seco. Ele partiu e ela voltou à pia, continuou a lavar o resto de copos que estavam repousados. Avistou pela janela o vulto sem ginga no meio da multidão, andando de mãos no bolso e ficando cada vez mais longe, pequeno, pequeno. Não devia ter feito isso, pensou. Pensou e ignorou, fingiu não ter feito. Tenho que parar, pensou. Pensou e nunca parou. Nunca parou. Era ainda o ensaio. O ensaio.

domingo, 14 de junho de 2009

Violeta

Para Brenda,
ainda eterno amor.

Coletou uma tira de barbante de dentro do pote, pequena, talvez dez ou quinze centímetros. Era vermelha, a tira. Coletou com o dedo indicador e o polegar, enquanto estava ainda sentado na poltrona da sala, ao lado do vaso com violetas, depois de ter arrancado uma folha do livro que mais gostava. Posicionou a folha na perna direita, colocou os óculos, e com muito cuidado, com cola líquida, desenhou um arco no papel. Foi posicionando o barbante em cima da cola, fazendo com que o barbante ficasse eternamente no formato de arco.

– Espera só mais um pouco, ainda não está pronto. Continue a fazer o que está fazendo – Ele disse.

Ela voltou para o quarto, e enquanto se olhava no espelho com o vestido vermelho nas mãos, posicionando-o em sua frente para prever como ficaria em seu corpo, aproveitava aqueles últimos momentos. Colocou o vestido na mala vermelha e continuou a procurar outras coisas. Vasculhou a gaveta da direita e encontrou alguns livros infantis, junto com algumas joias falsas, compradas na pequena barraca, no centro. Agarrou os brincos de argola, não tão grandes, com detalhes laranja, e os colocou nas orelhas.

– O que você achou desses? – perguntou, já da porta do quarto, pra que ele a visse.

Ele ainda estava concentrado, de cabeça baixa, como se estivesse trabalhando em uma daquelas miniaturas de navios que ficam dentro de garrafas. Mas não. Era vez da segunda tira de barbante. Laranja. Com a cola líquida, desenhou, logo abaixo do barbante vermelho, um novo arco, quase encostando no primeiro, e depois de pronto, posicionou a tira laranja e também a eternizou em formato de arco. Percebeu que ela havia falado alguma coisa, e como um susto de quem é interrompido de alguma concentração intensa, levantou a cabeça e olhou na direção da porta do quarto, onde ela estava parada, esperando sua resposta.

– O que foi que disse?

– O que você achou desses? – Apontou, com o indicador direito, para uma das orelhas – Os brincos.

– Ah, sim, os brincos. Estão ótimos. – Ficou em silêncio por alguns segundos, olhando-a. – Já terminou de arrumar suas coisas?

– Não, não. Ainda não. Está difícil escolher – Entrou novamente no quarto, e lá de dentro continuou, num tom mais alto: – Você está preocupado?

Ele não respondeu. Talvez não a tivesse escutado, ou simplesmente ignorou. Já estava na terceira tira de barbante. Amarela.

– Você está preocupado? – repetiu.

– Não sei, não sei. Estou com medo, só isso. Nunca passei tanto tempo assim, longe.

– É só por quatro anos, a gente se acostuma. E, também, existe alguns métodos que tornam o sofrimento um pouco menor.

Ela arrancou os brincos, se olhando no espelho, e colocou-os na pequena caixa de madeira que estava a tanto tempo jogada no fundo do armário. Seria agora, por improviso, a caixa de joias. Andou um pouco pelo quarto, indo e vindo numa mesma linha imaginária, com uma mão levantada no rosto, na boca, como quem está pensando. Parou em frente à porta do guarda-roupas e pegou o vestido amarelo, de seda, que havia ganhado a uns três aniversários antes. Vestiu-o, e em frente ao espelho, com um pé no chão por completo e o outro somente nas pontas dos dedos, girava o quadril para um lado e para o outro, tentando se ver em todos os ângulos.

– Por que é que essa coisas acontecem? – Ela perguntou, ainda num tom alto pra que ele a escutasse no outro cômodo.

– Eu não sei. Talvez por puro acaso, ou eu sei lá. Sempre acontece com a gente. “A gente”, digo, todo mundo. Quando tudo está bem e parece que a paz chegou é aí que ela não chega. Cai tudo na nossa cabeça, de uma hora pra outra. – Disse, ainda concentrado na tarefa.

Quarta tira de barbante, verde, também em formato de arco, colado logo abaixo da amarela. Continuou:

– Lembra daquela minha antiga namorada, a Lara?

– Lembro sim. – Ela disse, mexendo novamente nas gavetas.

– Lembra de como éramos juntos, unidos?

– Claro. Ela costumava ir sempre na sua casa, quando vocês eram mais novos, lembro que você me disse.

– Pois é. Jurei amor por ela, já estava até juntando dinheiro pra que a gente pudesse se casar e alugar uma casa em algum lugar...

– E qual é o ponto?

– Ela conheceu uma mulher e, de uma hora pra outra, disse que o amor por mim havia acabado e partiu. Por uma mulher.

– Você nunca havia me contado isso...

– É que as coisas dão errado. Num dia está tudo bem e no outro acaba, você não vê? A gente não escolhe nada. Absolutamente nada.

Encontrou, por entre os cabides, um velho cachecol verde. Lembrou de quando o comprou, na pequena loja, simples, pendurado num suporte de madeira. “Quanto é esse, moça?”, e voltou no dia seguinte para comprá-lo. Como era bom aquele tempo, pensou. Claro que tinha algum problema aqui e outro ali, mas nada assim, tão monstruoso. Vivia com a mãe, casa pequena, mas não faltava dinheiro. Costumava ir à missa aos domingos, mas com o tempo foi desacreditando e desacreditando, conforme a vida foi chegando. Deus está morto, ouviu alguém dizer, e confirmou que, talvez, realmente o estivesse, ou pelo menos aparentava ter se esquecido dela por completo. Talvez. Melhor não pensar nisso. Melhor não pensar.
Parada, com o cachecol na mão, lhe veio o sentimento. Sentimento de saudade, de falta, de dor. A gente realmente não escolhe nada, pensou. Uma lágrima escorreu desde seus olhos até a ponta do queixo, e ela limpou. Chorava baixo pra que ele não a escutasse, e limpava, e escorria outra, e limpava.

– Vejo sim – Ela disse. – Vejo sim...

Quinta tira, agora azul. Ele fazia com todo cuidado, como se fosse de ouro, uma obra de um artista anônimo esquecido na vida, feito rato de poço. Rato de poço, pensou. Sou um rato de poço.
Tempo atrás ele começou a se ocupar, depois de perder o emprego. Pintou todas as paredes da casa com pincel pequeno, pra que demorasse mais. Gostava de pintar, e o fazia quase o tempo todo agora. Se não estava pintando, estava mexendo com cores, seja lá de que forma fosse. Cores, gostava de azul, mais que de todas.

– E onde ela está agora, a Lara? – Ela perguntou, ainda de dentro do quarto.

– Está morando na Europa, ganhando uma grana preta com essa outra mulher... Deve ser modelo, ou prostituta, não sei direito...

Ela ficou, por alguns segundos, olhando fixo para a cama, com o dedo indicador nos lábios, como quem está tentando lembrar de alguma coisa, até que finalmente disse:

– Onde está aquele nosso retrato, de quando a gente foi pra Floripa?

– Deve estar debaixo da cama, naquela caixa de sapatos. – Ele disse, enquanto começava com a tira de cor anil.

Abaixou, puxou debaixo da cama a caixa de fotografias. Abriu-a. Procurou, por entre as tantas fotografias, a que ela desejava, até que, enfim, encontrou e colocou dentro da mala, que a essa hora já estava quase feita. Pra eu lembrar de nós enquanto eu estiver lá, ela pensou. Pra eu lembrar de nós.

Tira de cor violeta. Só falta essa, ele pensou. Mas não quis colocá-la ali, colada junto com as outras tiras de barbante, e não o fez. Olhou o arco-iris em forma de barbante, incompleto, e logo abaixo o trecho que mais gostava daquela página arrancada. Talvez o trecho que mais gostava do livro inteiro, e até de todos os livros existentes. Com uma caneta esferográfica, grifou, com todo cuidado: “...que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira...”* e logo abaixo, o que ela havia se tornado: “...essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso...” *.

– Achou a caixa? – Perguntou, já levantando da poltrona.

– Achei sim, a foto já está na mala, que é pra eu lembrar de nós. – Ela disse, já andando em direção à sala, a mala na mão.

– Acabei o que eu estava fazendo. Quer ver? – Ele perguntou, com a folha de livro rasgada na mão.

Ela veio em sua direção, e quando os dois já estavam em pé, um na frente do outro, colocou a mala no chão. Ele a entregou a folha, que fez com que ela ficasse olhando o arco-íris incompleto, o trecho, a folha inteira.

– Nossa, é tão lindo esse trecho. Por que nunca havia me mostrado antes?

– Não sei... Você nunca foi de ler muito. – Ele disse, com a mão direita na nuca, como quem está sem jeito, ou tímido por algum motivo.

– O arco-íris. – Ela disse.

– Que tem o arco-íris?

– Está incompleto... falta a cor violeta.

E foi quando ele arrancou uma violeta do vaso de violetas, que ficava ao lado da poltrona, e entregou à ela. Agora está completo, pensou. Um trecho, as cores, uma flor que completa as cores com o nome, violeta. O arco-íris.

– Agora está completo. – Ele disse.

– É... Agora está... – Uma lágrima interrompeu sua fala, escorrendo pelo seu rosto. – Agora está completo.

Ela o abraçou, de uma forma que a muito tempo não o fazia. Deu-lhe um beijo na boca, daqueles tímidos, como se fosse o primeiro. Acariciou suas bochechas, nuca, as mãos, e disse qualquer coisa que os casais dizem quando estão se despedindo. As lágrimas salgadas, dos dois, misturaram-se nas faces e com a saliva nas bocas. Eu não quero ir, pensou. Mas não o disse. Não quero ir, quero ficar aqui, com você, te ajudar com as cores, com as pinturas, continuar transando com você todo fim de tarde, continuar alugando nossos filmes idiotas de amor que sempre me dão vontade de chorar no final e que me fazem te abraçar forte e pensar “o meu tá aqui o meu tá aqui meu amor tá aqui”. Mas não. Tenho que ir, tenho que trabalhar. Logo, logo volto. Quatro anos, quatro anos, pensou.
Ele a acompanhou até a porta, colocou as palmas das mãos em suas bochechas femininas, macias. Deram um último e longo abraço.

– Mande cartas, muitas cartas. Todo dia, todo dia, está bem? – Ele disse, ainda com lágrimas.

– Eu mando, mando sim. Mando todos os dias, todos os dias.

– Você vai voltar mesmo? Quatro anos?

– É claro que volto, meu amor. Claro que volto. Sempre volto. Você sabe, não sabe?

– Sei, sim. Sei, sim. – Ele confirmou, de cabeça baixa.

Ela lhe deu um beijo no rosto e partiu. Despedidas longas são piores, pensaram juntos. Caminhou em direção à estação de trem, com a violeta nas mãos, o papel, o trecho grifado, pra que pudesse lembrar de casa. Ele a observou caminhando até que o corpo se tornou um pequeno ponto perto do horizonte, um ponto caminhante que voltaria dali a quatro anos. Ela vai escrever, pensou. Ela vai escrever. Entrou de volta para casa e fechou a porta, atrás de si. Andou em direção ao quarto, quarto agora silencioso. Deitou na cama, que ainda estava com o cheiro das roupas e do corpo dela. Chorou. Chorou. Chorou. Chorou. Dormiu. Chorou. Dormiu.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Deusa de Pedra


Era bonita, estática. Ainda enquanto o sol se levantava no meio do dia, formando uma luz intensa bem em cima da cidade, excluindo todas as sombras, ela ainda estava lá, no sol, parada, cinza, sem sombra. Passavam milhares de almas perdidas por ali, milhares de pessoas carentes, mulheres fumando ou com filhos no colo, mulheres misturadas com a multidão de homens de preto e maletas nos braços, que em quase todos os casos eram homens preocupados em chegar logo no escritório, pra fazer qualquer coisa que os homens de preto superiores mandassem, e assim. E assim sempre preocupados. Ela estava ali, parada, estática, bonita.
Bonita e estável, olhando fixamente para um ponto qualquer, como se não estivesse se importando com nada e ao mesmo tempo levando a dor do mundo nas costas, e aquelas. Aquelas pernas de pedra, numa pose imóvel sensual e extrema que só uma mulher consegue ter, imóvel, pra sempre, fatal, pra sempre, no meio da multidão. No meio da multidão e bonita. Tinha longos cabelos de pedras que não se mexiam, e os braços levantados, um com a mão na nuca, e o outro mirado pro ar, solto, leve e pesado, pesado de pedra. O quadril um pouco pro lado, como se estivesse dançando alguma dança tribal, indígena, rituais, danças, fogueiras, cantos, cantigas, danças. Um pé no chão e outro não, o outro levantado. Ela estava ali. Dançando imóvel.

I

Ela estava ali. Eu estava ali.

Todo dia, horário de almoço, eu passava por ela, com a maleta no braço, de terno preto. Me misturava no meio da multidão, sem saber pra onde iria, mas sabendo que seria pra perto dela. De pedra, a estátua de pedra. Tão bonita, e eu não sabia seu nome. Um dia pensei em chegar mais perto, perguntar oi tudo bem qual é seu nome?, mas não deu. Não tive coragem, à princípio. À princípio não tive coragem de nada, mas sabia de sua existência, e de tudo que ela retratava. A dança, a lua, a fogueira. Tudo. Era sempre ao meio dia, o horário que todos os Paulistas costumam sair dos iglus de cimento e janelas, e andar desesperados, como se estivessem com pressa, estando com pressa, em busca de um boteco qualquer ou algum restaurante caro, depende de quem. Depende de tudo. Tudo é assim, desesperado, na cidade grande. Rico ou pobre, desesperado. São Paulo.
Saí ao meio dia, e não lembrei que precisava comer, fui direto à praça do centro, onde ela ficava. A olhei por algum tempo, esperando que ela me olhasse de volta, e ela não olhou. Todo dia ficava na mesma posição, mesmo olhar, mesma dança, mesmo tudo. Toquei seus pés, com esperança de que ela se mexesse, mas era cinza, imóvel, gelado. Havia uma placa de bronze, bem embaixo, embaixo de seus pés, no quadrado onde ela estava dançando parada. Só havia uma data, mas não era possível fazer a leitura. Era velha, a placa. O bronze ficando preto, e as letras e números se desfazendo conforme o tempo passa. Sem sucesso, voltei pra casa. Voltei porque não havia mais nada pra mim, eu estava obcecado. Obcecado com a estátua de pedra. Ela é de pedra, foi esculpida, não tenho motivo pra amá-la, eu pensava. Pensava e mesmo assim voltava no outro dia. Por que você é tão misteriosa, por que? E nada. Ela não respondia, nunca respondia. Por que és tão bonita? Era estável, bonita.

II

Mas por que essa pressa toda?, me diziam. Diziam todo dia, e havia dias, todo dia, que eu não almoçava. Não almoçava pra poder vê-la. Cheguei um dia a tentar me posicionar bem onde o olhar dela estava se direcionando, pra poder fingir, ou acreditar, que ela estaria olhando pra mim. Mas não. Ela nunca olhava. Por mais que eu ficasse bem em sua frente, gritando hey hey hey olha pra mim, ela não olhava. Olhava em minha direção, mas não pra mim. Olhos cinzas, de pedra. Não pra mim. Parecia-me que olhava o horizonte, um olhar dançante, um olhar profundo enquanto ela estava dançando, imóvel, um olhar dançante enquanto ela estava profunda. Profunda em mim.
Seria grega, romana? Talvez moderna, brasileira mesmo, ou do chile. Talvez. Não sei. Procurei e procurei por Deuses e Deusas de toda a história e nada era parecido. Todos eram retratados em estátuas, mas ela era diferente. Era cinza, diferente. Ela dançava, e os Deuses não dançam, embora fosse interessante. Embora fosse interessante Deuses dançantes. Só acreditaria num Deus que soubesse dançar*, e ela dança. Minha Deusa dança, dança parada, imóvel. Minha Deusa dançando conforme o ritmo da cidade, acompanhando a pressa quase imóvel dos homens de preto. A rotina, segue a rotina. Dança Deusa, dança Deusa, dança, dança, dança. Não.

Não. Ela não dança. É uma estátua. Mas ela dança sim! Olha os pés dela, será que eu estou com algum problema? Ninguém percebe minha Deusa, ninguém percebe minha Deusa de pedra. Só eu, só eu percebo minha Deusa, bonita. Bonita.
Vejam, vejam aquele olho, olho cinza, já viram algum olho cinza? Já viram? Não. Não. Não. Não viram. E aquelas mãos de Deusas, que só as Deusas têm, já viram? Sim, está na nuca, mas dá pra ver um pouco, não dá? Dá sim, dá sim. E aqueles... espera. Passou mais um dia. Merda, passou mais um dia!
Mais um dia e eu não tive coragem. Não tive, mas amanhã terei. Talvez de noite, quando não tiver ninguém por lá. Depois do trabalho, não, não, depois do trabalho todo mundo tá indo embora, e os trens ficam cheios, lotados, cheirando a sovaco e vagina, odeio cheiro de vagina, mas não tanto, eu gosto, gosto sim se for parar pra pensar, mas não no trem. No trem é horrível. Horrível. Tem que ser depois. Meia noite. Não, meia noite é muito tarde, saio de casa onze e pouco. Isso. Resolvido. Onze e pouco é ótimo.

III

Eu juro, eu juro. Hoje vou pra lá. Está de noite, não vai ter ninguém no centro, a não ser os mendigos, mas eles dormem, sempre dormem, ou bebem. Bebem pra esquentar, pra esfriar, pra deixar alegre, pra acalmar. Mas não, não sou mendigo, não vou me afundar de novo numa garrafa de vinho, vinho caro, igual na época daquela vadia, vadia miserável que atrasou minha vida, da época antes, antes da Deusa, bem antes da Deusa. Vinho não, agora não. Depois talvez.

Abri a porta do meu quarto, olhei pro relógio, onze e quinze. Eu tinha dito onze e pouco, quinze é pouco, então saí aquela hora. Andei até a porta da sala, passos lentos, a lua estava cheia. Lua. Pensei em voltar pra cama, pegar um vinho e ficar ali, porque estava frio. Bem frio, e uma fogueira seria perfeito naquele momento. Ótimo, acenderia a fogueira quando chegasse lá, no centro. Não iria mais voltar. Comecei a caminhada.
Os miseráveis na rua dormindo ou bebendo, e eu não olhei nenhum nos olhos, estava guardando essa ação pra ela, só pra ela. De longe ouvia algumas melodias, bem de longe, talvez vindas do céu. Andei mais e mais e mais e eu a avistei de longe. Na mesma posição, dançando parada. A melodia aumentava e aumentava e aumentava e de repente os mendigos começaram a correr. Talvez trinta, quarenta homens e mulheres, miseráveis e fedendo, correndo na rua. Gritando, gritando, alegres, alegres sem motivos. A melodia aumentava, aumentava, e eu ouvia a flauta de madeira, e eles corriam, gritavam, os mendigos, e eu ouvia os tambores, e os gritos e as falas indígenas, todas vindas do céu. Uhh uhh uhh e reuniram-se quinze ao lado dela, da Deusa, e acenderam a fogueira, fogueira gigante. E eles dançavam em volta da fogueira, os quinze, enquanto os outros quinze ou vinte corriam em volta da Deusa, já nus, todos, homens e mulheres, e quando vi havia já uma outra fogueira do outro lado, e num lapso de tempo eu já estava nu também, correndo, pulando em volta da fogueira. Uhh uhh uhh eles gritavam, com vozes agudas, feito indígenas, e então eu comecei a gritar, numa melodia tribal, o som dos Deuses e das Deusas, ela dançava, e pulava, e dançava e a energia começou a subir e a lua ficou maior, a lua balançava e balançava e eu dançava. Até que.
Até que ela começou a rachar, a Deusa, não o corpo, mas os pés. As fogueiras já atingiam seis metros de altura, cada uma, e a mão da nuca se descolou e ela balançava a mão pra cima e pra baixo. A outra mão do ar também balançava, e balançava feito ondas de mar. Ela virou a cabeça, e por fim mexeu os olhos, já azuis, olhou pra mim, sorriu, desceu do quadrado da placa de bronze e pulava, pulava, pulava, pegou em meus braços, e a música estava alta, alta, a melodia estava alta, vindo do céu, a flauta, os tambores, agora haviam cinquenta vozes, feito corais de igreja, mas não eram de igreja, eram mendigos. E o vinho, o vinho, choveu vinho, e todos nós, nus, dançávamos na chuva de vinho e a fogueira aumentava inexplicavelmente. A sua pele cinza começava a ficar avermelhada, não do vinho, mas de qualquer outra coisa que vinha de dentro. Ela estava virando. Ela estava virando. Mulher. Mulher, minha Deusa. E eu a peguei no colo, pulando, dançando ainda, e depois ela também me pegou no colo, e me colocou no quadrado da placa de bronze, que agora estava nova, brilhante, com meu nome estampado e a data de nascimento, sem data de morte. Não pude mais me mexer, a melodia foi ficando baixa, baixa, até que eu não pude mais a escutar. E os mendigos puseram as roupas, e a chuva de vinho parou. E eu estava imóvel. Minha Deusa andando em direção ao horizonte, e eu parado. Parado. Fiquei cinza, imóvel, todos foram dormir, a cidade ficou em silêncio absoluto. Não conseguia mais a ver, e nem mexer os olhos. Eles ficaram grudados, meus olhos, olhando fixamente pro horizonte. Me imobilizei do ultimo movimento da dança, mão esquerda na nuca, mão direita no ar, leve e pesada de pedra. Um pé estava levantado, pra frente, enquanto o outro sustentava todo o peso do corpo. Corpo agora de pedra.
Passaram-se dias e dias, e uma moça, moça bonita, tocou no meu pé. Eu a senti, mas não consegui mexê-lo, embora ela tenha o tocado pra que eu o fizesse. Perguntou meu nome e eu não pude responder, mesmo querendo. Ela me disse que viria um dia de noite, mas até agora não veio, talvez um dia ela venha. Disse que eu sou um Deus, Deus de pedra, e eu não entendo. Não sou Deus. Não sou Deus. Embora eu saiba dançar, não sou um Deus. Minha Deusa também não era Deusa. Não há Deus algum em lugar nenhum.

Ninguém é nada, talvez todos sejam de pedra, e eu já não sei mais o que é pedra e o que é gente.

IV

É ela, é ela, a moça. A moça! Finalmente! Ela está vindo. Olha os mendigos, olha a chuva, olha a música! Olha a...
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*= Nietzsche