sexta-feira, 24 de abril de 2009

A História de um Sonhador Incompleto - Do Outro Lado

O dia estava um pouco cinza, mas eu gosto assim. Sabe, os dias cinzas são bons pra pensar, e além de tudo, quando faz sol, o calor e o barulho dos ventiladores me incomodam. Eu estava voltando do trabalho, e pra quem ainda não sabe, trabalho na droga de uma loja de aspirador de pó. Lá vende outras coisas também, mas o forte é aspirador de pó. Como eu estava dizendo, estava andando lentamente, voltando pra casa, quando ouvi uns gritos estranhos vindo do fim da rua. Fui até lá, só de farra, curiosidade mesmo. Era um mendigo, ou qualquer coisa assim. Ele dizia uma frase só, e dizia cem mil vezes: "Pra onde vão os ratos? Pra onde vão os ratos? Pra onde vão os ratos?..." É uma coisa curiosa, mas pra falar a verdade não dou a mínima pra isso. Não tenho o mínimo de interesse em saber pra onde os ratos vão ou deixam de ir, portanto, continuei andando.
É engraçado como todas as pessoas na rua têm a mesma feição, aquela de indiferença, como se estivessem de saco cheio de alguma coisa que nem elas sabem. Lembro que uma velha tinha passado bem do meu lado, e era bem velha, com a cara toda enrugada, cabelos todos brancos, e tudo mais. O fato é que ela não se importava com nada. Estava com um gato por entre os braços, segurando como se fosse um bebê. Fiquei pensando naquela velha, que hoje já deve ter batido as botas. Já devia ter passado por muita coisa na vida, visto de tudo, tudo mesmo. E ela estava lá, andando na rua com a droga de um gato, como se nada estivesse acontecendo. Sabe, deve ser ruim ser velho, na beira dos oitenta anos, quando a gente sabe que a qualquer momento a gente pode morrer. Fico imaginando qual será a sensação quando chegar minha vez de bater as botas. A solução é comprar um gato e sair por aí, andar pelas ruas sem motivo nenhum, deve resolver alguma coisa. De qualquer forma, depois de um tempo deixei a velha pra lá, pois não valia a pena ficar perdendo meu tempo pensando em uma velha.
Fui sentar num banco de praça, daqueles meio brancos, marrons em algumas partes, que a gente encontra sempre no centro da cidade. Os pombos sempre ficam por ali, procurando migalhas e restos de qualquer porcaria que se pode mastigar e engolir. Não entendo qual é a função deles, os pombos. Imagino que eles fazem parte da cadeia alimentar, afinal, são animais. Mas o fato é, se um bicho maior come o pombo, e o pombo come as migalhas de pão, as migalhas de pão deveriam fazer parte da cadeia alimentar também, mesmo não sendo animais. Na verdade isso não faz a menor diferença, ninguém realmente se importa com isso, e muito menos eu.
Como estava dizendo, sentei num banco de praça. Na verdade era pra me encontrar com minha menina (Ela saiu do trabalho no mesmo horário que eu, aquele dia), mas aproveitei o momento pra pensar, o que foi um desastre. Ninguém deve parar pra pensar. Ninguém. Nunca. Imagine só como o mundo ficaria se todo mundo parasse pra pensar, de repente, na mesma hora. Talvez todos parassem de trabalhar, ou se não iriam enxergar o quão idiota a gente é por perder mais de metade de nossa vida fazendo coisas inúteis, como por exemplo, estudar, trabalhar, se formar, e etc, pra depois de tudo morrer feito um pedaço de carne ambulante. Até imagino milhões de pessoas saindo todos nus pelas ruas, gritando "Liberdade! Enfim, liberdade! Viva!". Todos se pegando, gritando, todos felizes, libertos... Mas não! Vivemos aqui, e temos que trabalhar, trabalhar feito animais idiotas. Claro que trabalhar dá dinheiro, sim, mas seria melhor se o dinheiro viesse sozinho, sem esforço, enquanto eu estivesse deitado na porcaria do sofá da minha casa, assistindo qualquer programa idiota que passa na TV, ou amando minha menina, ou qualquer outra coisa. O que eu sei é que aprendi, na minha vida monótona, a evitar o máximo parar pra pensar, mas nos dias cinzas não consigo evitar, não mesmo.
Sabe, conheci minha menina quando eu era bem menor, antes de meu pai morrer, e foi lá no colégio de freira. Por incrível que pareça, ela era uma das freiras, mas era só por obrigação. Sua mãe era uma freira também, e pecou cruelmente por transar com o padre e engravidar dele. Claro que ela deixou de ser freira, e o padre deixou de ser padre, mas como sacrifício, resolveu tentar fazer de sua filha uma santa. Coitada. De freira mesmo sua filha só tinha a roupa. Desde quando entrei lá eu desconfiava que tinha alguma coisa estranha naquela menina. Até que um dia, no intervalo entre as aulas, a vi no refeitório, olhando pra mim sem parar e fazendo algum sinal que eu não conseguia entender. O que eu sei é que a segui, mesmo sabendo que perderia as próximas aulas, mas eu nem dei a mínima. Fui guiado, sem saber, até o lugarzinho onde eram guardados os materiais de limpeza. Era grande, o lugarzinho, pelo menos parecia grande naquela época. A gente ficava à vontade ali, sem ficar espremidos nem nada. O que eu sei é que não houve palavras, ela simplesmente tirou toda a roupa, a minha e a dela, e começou a me lamber. Claro que ela não fazia isso com outro, afinal, não gostava daqueles mauricinhos-filhinhos-de-papai do colégio. Depois daquele dia nos encontrávamos sempre, depois da aula, naquele mesmo lugarzinho, pois nem eu e nem ela podíamos sair de dentro da droga do colégio. O que deu foi que ela engravidou, e por pura sorte ou misericórdia de Deus, o feto caiu na água enquanto ela estava sentada na privada. Quando ela me contou, até então eu nem sabia que ela estava grávida, e nem ela sabia antes do ocorrido, mas aquilo era uma ótima desculpa pra gente poder sair daquele colégio. Então resolvemos contar tudo ao padre, e depois da gente ter apanhado feito cachorro podre, a gente foi expulso, finalmente, daquele lugar. Hoje a gente vive bem, até que bem. Não sou muito de falar, mas de vez em quando falo pra ela que a amo. Na verdade amo muito, muito mesmo, não vivo sem ela, só que evito ficar falando sempre pra não perder a intensidade das palavras. A gente sempre sai, vai pro lago, ou fica em casa mesmo, só conversando, ou se amando, e essas coisas assim, mas isso é outra história.
Voltando ao assunto, depois de eu ter esperado um pouco no banco da praça, ela chegou, minha menina. Voltamos caminhando, bem lentamente, e no caminho de casa enxerguei, bem de longe, um grupo de ratinhos entrando no bueiro. Era um bocado deles, talvez uns dez ou onze. Lembrei do mendigo, e fiquei até com vontade de voltar lá onde ele estava e falar: "Hey, os ratos vão pro bueiro! Eles vão pro bueiro! Não se preocupe não, viu!?", mas não, desisti da idéia. O que eu sei é que logo depois começou uma chuva fortíssima, e percebi que os ratos eram bem mais espertos que a gente. No fim deu que fomos pra casa, tomamos a maior chuva, pra poder repetir tudo de novo no outro dia. Mas um dia isso muda, e quando mudar, prometo contar.

26 comentários:

  1. Vim retribuir a visita e qual não foi minha surpresa ao depara-me com um escritor, pelo jeito ! Já vi que perderei horas por aqui lendo seus contos .... Voltarei, me aguarde !! Já coloquei seu Blog tb na minha lista, com o maior prazer !
    Quero ler alguns dos seus contos antes de tecer algum comentário .... será bem melhor assim, não é mesmo ??
    Prazer enorme !
    Helô

    Ps. vc tá on ?? precisaria de um ligeiro help e se estiver, me dê um toque, ok ?? rs

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  2. Lucas, realmente um belo conto!
    Vc tem uma familiaridade com as palavras incrível!

    Sou uma iniciante por aqui....
    Nada sei de escrever... Sei sentir apenas, e ao sentir, tento colocar no papel...Ops! No computador...rsrsrsr

    Obrigada por seu lindo comentário!


    Beijos avassaladores!

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  3. E assim é a vida, tal como ela é Lucas!
    Eu ainda assim prefiro ter a força de mil ventos, de um tornado mesmo, e manter-me alheia e atenta a tuda esta vida, e quando envelhecer sei que vivi o que a minha mente me permitiu, uma ilusão consciente, e sabe tão bem acordar do lado da pessoa que nos ama...ser acoradado a meio da noite e sentir que a sua mão vagueia em nosso corpo...mesmo que ali do lado não esteja ninguém...
    Talvez eu um dia acorde para a vida, até lá serei feliz...
    Amei a cumplicidade do sem-abrigo e os seus ratos, serão talvez tudo o que lhes resta!
    Beijinhos
    Liliana

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  4. Gostei muito!
    Engraçado, que ainda ontem à noite eu pensava pra mim própria como seria que eu ia morrer... Se velha, se nova... Mas cheguei à conclusão que não vale mesmo a pena pensar nisso, acontecerá o que tem que acontecer!

    A história está muito boa mesmo! Parabéns!
    Ah! Também gostei da parte que fala "Liberdade! Enfim, liberdade! Viva!" porque hoje é dia da Liberdade aqui em Portugal! :)

    Beijinhos

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  5. muito bom.
    você escreve muito bem, cara
    vou colocar seu link no meu blog :)

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  6. Ameeei esse texo...Muito interessante.
    Mil beijossss

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  7. ...engraçado que enquando ia
    avançando na leitura do teu post,
    fui imaginando os 'ratos', todos
    engravatados entrando no congresso,
    nas câmaras, no palácio do planalto,
    e de lá ditam festas de roubalheiras
    sem par...

    sorry lindo...

    este mendigo do teu post, me fez
    lembrar de coisas nojentas que o ser
    humano faz...

    bjusss

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  8. cara viajeeei gela no seu conto!
    hauahauahauahsua.
    muiiito perfeito ;D

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  9. "É engraçado como todas as pessoas na rua têm a mesma feição, aquela de indiferença, como se estivessem de saco cheio de alguma coisa" eu sempre acheii isso!!eu fico olhando o povo na rua..muito inconciniente eu..HAHAHAH
    beijinhO chuchu

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  10. quando você encontrou a sua menina as pessoas continuaram sem rostos? que coisa isso..

    beijo*

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  11. Seu talento com as palavras é genial!

    Lindo texto!

    Bjo em teu coração!

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  12. Cara, fiquei encantada ao ler teu texto.
    Como escreve bem!
    Adorei teu Lirismo, e devo dizer, brilhante tuas idéias e expressões. Me prendeu e ão consegui parar de ler, : )

    boa sorte senhorsinho.

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  13. Molto suggestiva questa immagine...sembra un dipinto...complimenti!
    Vito

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  14. Qeu post demais!
    Eu já parei demais pra pensar sobre essas feições gélidas das pessoas, todos os dias...

    E que história!

    ;**

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  15. Lucas, tão bonito teu blog, tuas histórias todas... add seu blog ao meu. aí a gente fica combinado assim: VIZINHOS! =) um beijo.

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  16. com certeza já linkei!
    E vou estar por aqui sempre
    :)

    =*

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  17. com certeza, inventar nossas histórias é o melhor jeito de conhecer tudo e principalmente a nós mesmos.

    esse seu conto me lembrou um pouco a min mesmo, quando paro pra pensar sou completamente flutuante, saio e entro em outro assunto sem perceber. fico olhando pra pessoas na rua e tentando imaginar a história delas. acho que a maioria das pessoas nem percebe, ou está mais preocupada com a própria história.

    até logo

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  18. Lucassss querido, nossa a outra versão da historia, eu imagieni ele mais frio, e fiquei feliz que ele nao pe como imaginei!
    ô saudades que eu tava de ti, beijossssssss
    ahh sabia que existe mais casos de padres com freias que podemos imaginar??? ahhh isso é outra historia que eu tenho pra te contar
    bjos

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  19. Oi, moço!
    Vim reler vc !
    É sempre bom uma nova análise de algo tão forte como esse texto...

    Beijo grande?!

    Uma linda semana!

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  20. Texto profissional.

    Muito escritor editado, não tem sua competência.

    Aproveite, rapidinho sua change, nãoa deixe passar.

    serei seu seguidor.

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  21. Desculpe a digitação :"chance" e "não".

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  22. muito bom mesmo, os animais são mais espertos que nós e, por vezes, ainda sabem amar melhor.

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