quarta-feira, 22 de julho de 2009

Saudade


Para ler ao som de:
Marcelo Camelo - Saudade

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Querida Lara,

Confesso que tenho sim alguma coisa a te dizer, mas antes tenho outras coisas ainda, talvez não tão importantes quanto esta primeira, mas ainda assim são coisas e tudo que se pode chamar de coisa deve ser dito. É que ultimamente ando pensando muito, e quando digo pensando me refiro à filosofia, não essa de Platão e Aristóteles e sim essa das pessoas comuns, as perguntas sem respostas que todos ainda teimam em fazer incessantemente e infinitamente até o fim da vida, e não que de fato tenham alguma resposta. Eu estou ainda procurando e tenho sim qualquer esperança em entender o que não tem sentido algum. Mas não se trata disso. É o medo que me atormenta, e essa é uma das coisas que tenho antes pra dizer.

Esse medo absurdo que tenho de envelhecer. Acho que eu sou habilidoso apenas em ser jovem. Não me imagino velho nem daqui a cinquenta anos. Posso até me ver com os cabelos brancos e a cara enrugada, mas desde que eu esteja assistindo desenhos animados, tocando musicas de três acordes no violão ou qualquer coisa assim. Lembro dos bons tempos, bem melhores que esses de agora, bem melhores – Os tempos passados sempre são melhores –, aqueles em que andávamos por aí no meio das casas bonitas e você me falava qual você mais gostava e eu concordava, às vezes não, apontava que a nossa casa seria assim, e assim, ou talvez assim, o que acha desse marrom? Não, não... bege é mais bonito. E quando você foi embora eu passei tinta branca por todas as paredes beges e marrons de nossa casa nova, que foi pra eu tentar mudar alguma coisa, embora eu soubesse a todo momento que as cores ainda continuavam ali, se escondendo por baixo do branco e liberando todas as energias vindas do passado que me faziam lembrar de nós e chorar, não fisicamente e sim psicologicamente. Chorava psicologicamente porque depois de um tempo soltar berros e lágrimas pelos olhos se torna uma coisa absurdamente ridícula e entediante. Prefiro em pensamento, sem os berros e sem as lágrimas.
Além da tinta, eu renovei os móveis. Joguei fora o sofá e a geladeira que sua mãe nos deu, e não que eles fossem feios. Eles eram lindos, mas tudo nessa casa me lembrava você e eu não queria viver por entre seus fantasmas, não mais. O guarda-roupas marrom está branco, e o lugar onde ficava suas roupas guarda agora meus aeromodelos. Agora coleciono aeromodelos, embora eu não seja muito bom nisso. A cama agora é só colchão. Doei a parte de madeira para a caridade. Não preciso de muito luxo. Não mais. Troquei a TV, a pia do banheiro, os tapetes, e tudo mais que você imagina. Guardei apenas algumas fotografias nossas, mas não as vejo muito, a não ser nesses últimos tempos. Só quando sinto muita saudade, e quando digo muita me refiro a um nível de saudade absurdo, talvez o máximo de saudade que uma pessoa consiga sentir. Como se fosse uma abstinência de heroína ou qualquer coisa assim. E ultimamente ando olhando muito essas fotografias.
A loja não anda vendendo muito, mas pelo menos consigo me manter. As coisas são difíceis sem você e, alem disso, ninguém mais compra disco em vinil hoje em dia. Eu não consigo levar nas costas o que você me ajudava a carregar pela metade, ou talvez carregasse tudo e deixasse o mais fácil para mim. Pensei em fazer alguma outra coisa, sim, mas como disse, estou envelhecendo e não sei ser essa pessoa que o tempo está me tornando.

Depois que você partiu eu passei muito tempo fingindo ser um alguem. Fingi tanto ser esse estranho que hoje eu não sei mais não o ser. Me tornei o meu próprio personagem e agora, quando eu quero ser eu mesmo, tenho que lembrar de como eu era antes e fingir. É uma confusão, um pouco confuso sim, eu sei, mas é exatamente isso que está acontecendo. Me olho no espelho e não sei se é eu ou se é quem eu finjo ser. Tudo já se tornou uma coisa só. Eu não sei mais quem eu sou porque na verdade alguma coisa é que me é, e essa coisa não sou eu, se é que isso faz alguma diferença. E faz. Gigantesca.
Lembro ainda dos tempos em que eu era eu mesmo, junto com você, e me pergunto se você já esteve distraída. Quando falo distraída me refiro a uma longa distração, talvez cinco, dez, quinze anos. É que me veio, assim, numa dessas noites, sozinho por entre as paredes brancas, que os meus melhores anos eu passei distraído. Não que eu estivesse prestando atenção em qualquer outra coisa, mas eu sempre achava que os tempos podiam melhorar ainda mais, sem perceber que já estavam no limite do que chamam de bom, e eu esqueci de aproveitá-los. Achei que durariam para sempre. Talvez seja porque quando uma coisa boa se torna constante, ela passa a ser normal depois de um tempo e, ainda depois, em anos de tempos bons, o tédio chega e é aí que o inferno inteiro começa. Eu joguei tudo para o alto pensando que eu iria ser feliz de qualquer outro jeito, mas na verdade eu só não lembrava mais que eu já era feliz e que a tristeza, essa da qual todo mundo falava, de fato existia. E existe. E você, já esteve distraída? Mesmo que sim, eu imagino que na sua situação não importa mais, já que tudo é branco e tudo é triste, ou talvez isso seja a felicidade, o branco, o vazio. Na ausência de tudo há também a ausência da tristeza. Eu não entendo, e ninguém entende o lugar por onde andas. Não ainda.

Já te falei as primeiras coisas e agora eu tenho que te dizer o que realmente é importante. É que é difícil para eu dizer, quase impossível, talvez eu não consiga, não sei se entende. Tantos anos sozinho, aqui ou na loja, sem falar com ninguém a não ser com o carteiro e as pessoas que me entregam a água e as compras, de vez em quando alguma coisa a mais que eu encomendo, quase nunca, e as únicas palavras que eu escuto são assine aqui, aqui e aqui, por favor. Eu não me dou o trabalho de ir até o mercado ou qualquer outro lugar. Compro tudo na internet. O fato é que eu desaprendi a falar com as pessoas, e principalmente com você, que partiu há tantos anos e me fez não querer mais falar com ninguém. Mas é claro, sim, tenho que te dizer e eu estou enrolando. É que é difícil dizer, eu não consigo. Eu já vou dizer. Bem, o que eu tenho pra te dizer é que. É que. Nunca te disse isso. Bem, por onde começo? É que. É que. Está bem, estou quase criando coragem. O que eu tenho de importante pra te dizer é que eu te amei e. É que eu te amei e. É que eu te amei e eu. É que eu te amei e ainda te amo, e sinto saudade. Aquela saudade das fotografias, e ainda mais. Saudade absurda, impossível. Saudade. Saudade. Saudade. Saudade. Até que a palavra perca o sentido. Saudade. Saudade. Saudade. Saudade... Tenho saudade de você e de tudo que você me trazia, e tenho saudade da minha vida antiga, me sinto como se um dia ela fosse voltar, essa vida, você. Meu eu verdadeiro era com você, aquela vida, a casa nova, a loja, o violão. Não esse eu de agora. Esse eu sozinho. Tenho saudade. Saudade. Tenho saudade de você e, principalmente, tenho saudade de mim.

Com amor,
Seu amor.

33 comentários:

  1. quando alguem que a gente gosta parte de nós, a gente começa a sentir saudade de nós, sei como é isso, é porque leva um tanto da gente consigo tambem.

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  2. Lucas... Chegar aqui e ler uma carta dessas... Quanta magia... E se a Lara existe, ela recebeu o maior presente que uma mulher pode receber de uma homem..

    Uma linda e sensível declaração de amor...

    Beijos e saudades!

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  3. É triste mesmo quando alguém que nos completa, vai embora. Quando é amor de verdade, a pessoa se perde na solidão... esquece de si, pois não se vê mais completo.
    Se ela existir, tem sorte de ser amada assim. Se ela existir e for inteligente, ela volta... e vem trazendo, você.. sua vida, alegria, de volta com ela.

    Beijo grande.

    ps: essa carta foi, definitivamente, uma das coisas mais lindas que li nesses ultimos tempos e pra completar... onvindo Camelo, é pra fazer qualquer mulher chorar! :x
    MUITO OBRIGADA por me dar a opotunidade de me emocionar assim. Beijo de Luz

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  4. na realidade, essa foto, esse conto e essa música, é bem do que eu falo, é bem do vacilo, meu deus, *-*

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  5. Noooooossa, quando vi a música que serviria de fundo logo pensei, respira fundo e se prepara, e me emocionei, juro, pois eu gostaria de coração de receber uma carta assim, gostaria de ter palavras escritas desta forma para mim.

    Espero que essa pessoa traga de volta tudo o que hoje não existe mais, principalmente você mesmo, que pinte novamente as paredes da casa com alegria e que lhe faça companhia no colchão que agora fica no chão.

    Só para lembrar, amo seus textos, vc definitivamente é especial.

    Beijos com carinho!

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  6. Não podia ter escolhido melhor música... Essa carta foi num tom tão minimalista e desesperador, de alguém que nem espera a volta,mas já pensa não conseguir mais viver sem. Um café.

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  7. Partir alguém tão especial, que já da gente, é como se arrancassem um pedaço do nosso coração! mais a vida é assim, quando pensamos que temos um irmão, um amor, em um minuto ele se manda, rasga fora, vai embora e deixa apenas saudades e saudades.

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  8. ...esta carta me fez pensar
    nas rugas que fatalmente traremos
    na pele,
    mas nem por isso devemos deixar
    que se tatuem no coração.

    você é um lindooooooo!

    bjuuuu grande!

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  9. Que angústia deu em mim ao te ler, Lucas.
    Nossa, senti pena, te admirei, te quis como meu amado, senti vontade inclusive de bater em você pra que deixe de ser esse saudosista nato.
    Mas, foi divino te ler hoje, aqui, ao som do piano.

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  10. Quanto amor presente nesta carta, fiquei boque-aberta.
    Foi um desabafo um pouco triste, porque falta algo a esse rapaz para ser feliz, para viver, mas ele não consegue, e ele já se habituou a esse novo ele, que muito dificilmente vai conseguir a ser feliz, ou quem sabe à momentos em que ele é feliz assim mesmo como ele é.

    E se um dia ela lesse esta carta, decerteza absoluta que ficaria radiante, popis quem não gostaria de recbeer asim uma carta como estas linda.

    Gostei muito sinceramente.

    Beijo muito grande, e peço imensas desculpas pela minha ausência.


    n_n

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  11. Puxa Lucas ! Vc agora pegou na jugular ... Falou das perdas, tema que têm sido frequente em minha vida nos últimos tempos, e creio que talvez até de mim mesma ... Daí a plena identificação com o seu belíssimo texto!
    Se chorei, sim chorei ...
    Identifiquei-me desde os questionamentos infindáveis e infinitamente sem respostas, às lembranças que tanto nos fazem doer a alma, às esperas de que dias melhores virão, enquanto o presente se dissolve bem à nossa frente ...
    E por aí vai !
    Só que no meu caso não foi de um companheiro ou coisa assim, e sim de pessoas queridas que têm partido pra longe de mim!
    Ás vezes eu me pergunto o que poderia nos causar mais dor: se um amor como este, tão intensamente vivido e trocado, ou a falta de um amor de verdade em nossas vidas !
    De certa forma, eu creio que a saudade de um amor bem vivido, nos alimenta a alma ... mas na ausência deste sentimento em nossas vidas, o que irá nos alimentar ?
    Que bom que, com o seu retorno, tenha suprido nossas saudades, com tão belo texto !!
    Beijos
    Helô

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  12. Lucas, me tocou o coracao de um modo que comecei a chorar ate solucar.
    Nao sei mais o que dizer, sei que eu gostei.
    "Com amor, Seu amor." Ah, perfeito!

    Um beijo.

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  13. Olá, Lucas.

    Encontrei seu blog por acaso, indo e vindo por aí e, simplesmente, ADOREI tudo por aqui!

    Passei um bom tempo lendo suas cartas, contos e textos... parabéns! Vc escreve muito bem!

    Gosto muito de contos e cartas, mas acho que não sou boa em escrevê-los. Tentei uma vez escrever uma carta, mas sei lá... rs

    Te deixar o endereço, caso queira ler:

    http://gramaticamando.blogspot.com/2009/04/carta-mulher-mulher.html

    No mais, te desejo tudo de bom. Voltarei mais vezes para lê-lo.

    Beijos,
    Patrícia Lara.

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  14. Simplesmente perfeito.
    Gostaria de ter sido amada assim.
    Conheço essa saudade, mal cabe dentro de nós.
    Mas saudade assim, só sente quem viveu um grande amor, cheio de cores, e paredes, e móveis.

    Amei ler você.

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  15. putz...que lindo, mas que triste...

    me senti totalmente na historia.
    bjos

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  16. Fazia um tempinho que não passava por aqui. E que surpresa ao ler sobre a saudade, esse sentimento que nos remete a lembranças boas e ruins, dependendo do contexto. Como sempre, belíssimo texto que jorra sinestesia nos olhos do leitor, de uma preocupação narrativa-visual que dá gosto de apreciar.

    Abraço.

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  17. adoreeei.
    cara viajeei.. como sempre.
    você escreve MUITO

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  18. "Não que eu estivesse prestando atenção em qualquer outra coisa, mas eu sempre achava que os tempos podiam melhorar ainda mais, sem perceber que já estavam no limite do que chamam de bom, e eu esqueci de aproveitá-los."

    De fato, nos distraímos, Lucas. Talvez eu não conseguiria definir essa sensação tão comum, com tamanha clareza como fez.

    Gostei muito!
    Deixo um abraço.

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  19. Lucas,
    Li e li de novo...às vezes volto pra ler mais uma vez.
    Uma mistura enoorme de sensações uas palavras provocam.
    Despertam saudades trancadas a muitas chaves em tantos baús perdidos.
    Muito bom!
    Parabéns e muitas palavras mais para você continuar fazendo bem!
    bjos!

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  20. Senti a solidão dele, a falta de sociabilidade. :/

    A musica completou perfeitamente, lindo!

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  21. Comentários rápidos e diretos

    Foto perfeita
    Música? Ainda não ouvi.Ouvirei agora!
    Texto com a leveza e impacto que apenas lendo textos do Lucas, poderia sentir.

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  22. Que linda...

    Sou Lara (de verdade), mas acho que já deixei de ser para alguém uma Lara como essa da sua carta...


    :*

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  23. Nossa, Lucas. Foi um dos mais lindos que já li aqui e acho que em qualquer lugar.
    Me emocionou demais. Quase chorei. Contive as lágrimas, pois estou no trabalho.
    Que lindo.
    Queria te dar um abraço agora. Um abraço de muito obrigada por escrever como escreve e ter sensibilidade tão grande para escrever.
    Parabéns.
    Um dia lhe dou esse abraço. Mas receba-o neste momento.
    Um beijo grande pra você.

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  24. Lucas,passei aqui e fui ficando, fui me emocionando, fui querendo mais.
    quando não temos perto esse amor tão grande, a saudade maior que existe é de nós mesmos. Do que somos ao lado desse desmedido querer.
    Parabéns! bj

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  25. ão gostei do comecinho, me pareceu meio q confuso e dispensavel...

    no mais, vc fez o q sabe fazer muito bem
    =D

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  26. Acontece quando dois passam a ser um. E o outro se torna inteiro, numa mistura que é essência. Essa carta é gratidão. E tormento. E amor. Puro, pálido, ávido. Amor que precisa existir, apesar das falhas. Insistente.

    Uma carta de amor pra nós, Lucas. Por você que domina as letras e traz a poesia pra sentar ao nosso lado, enquando brilham os olhos sobre o teclado.

    Meu abraço.

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  27. Você é simplesmente incrível.
    eu ainda tenho esperanças de uma carta assim .

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  28. Saudade e amor estão interligados, eles se completam. Só posso dizer que esta sua carta está excelente!!!!!!!!!!! Parabéns!

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  29. Belo conto, Lucas! De fato, você se excede a cada novo texto e isos me deixa muito admirado. Também escrevo prosa, e meu grande desejo é atingir o nível no qual você está. Parabéns e continue assim!

    www.omalucosadio.blogspot.com
    www.rosadepedra.blogspot.com

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  30. Acho que de todos os outros blogs que acompanho, o seu ganha de tantos comentários postados a cada post! asuhhusa :D PARABÉÉNS!

    ps: Tem um selo pra você no meu blog!

    Se cuida!

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  31. Hoje em dia é difícil encontrar sentimentalismo como esse. Das músicas do Cazuza, discos de vinil. E é mesmo. O outro nos ajuda a carregar o peso. Sozinhos, ficamos mais fracos. Gostei muito, Lucas.

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