domingo, 14 de junho de 2009

Violeta

Para Brenda,
ainda eterno amor.

Coletou uma tira de barbante de dentro do pote, pequena, talvez dez ou quinze centímetros. Era vermelha, a tira. Coletou com o dedo indicador e o polegar, enquanto estava ainda sentado na poltrona da sala, ao lado do vaso com violetas, depois de ter arrancado uma folha do livro que mais gostava. Posicionou a folha na perna direita, colocou os óculos, e com muito cuidado, com cola líquida, desenhou um arco no papel. Foi posicionando o barbante em cima da cola, fazendo com que o barbante ficasse eternamente no formato de arco.

– Espera só mais um pouco, ainda não está pronto. Continue a fazer o que está fazendo – Ele disse.

Ela voltou para o quarto, e enquanto se olhava no espelho com o vestido vermelho nas mãos, posicionando-o em sua frente para prever como ficaria em seu corpo, aproveitava aqueles últimos momentos. Colocou o vestido na mala vermelha e continuou a procurar outras coisas. Vasculhou a gaveta da direita e encontrou alguns livros infantis, junto com algumas joias falsas, compradas na pequena barraca, no centro. Agarrou os brincos de argola, não tão grandes, com detalhes laranja, e os colocou nas orelhas.

– O que você achou desses? – perguntou, já da porta do quarto, pra que ele a visse.

Ele ainda estava concentrado, de cabeça baixa, como se estivesse trabalhando em uma daquelas miniaturas de navios que ficam dentro de garrafas. Mas não. Era vez da segunda tira de barbante. Laranja. Com a cola líquida, desenhou, logo abaixo do barbante vermelho, um novo arco, quase encostando no primeiro, e depois de pronto, posicionou a tira laranja e também a eternizou em formato de arco. Percebeu que ela havia falado alguma coisa, e como um susto de quem é interrompido de alguma concentração intensa, levantou a cabeça e olhou na direção da porta do quarto, onde ela estava parada, esperando sua resposta.

– O que foi que disse?

– O que você achou desses? – Apontou, com o indicador direito, para uma das orelhas – Os brincos.

– Ah, sim, os brincos. Estão ótimos. – Ficou em silêncio por alguns segundos, olhando-a. – Já terminou de arrumar suas coisas?

– Não, não. Ainda não. Está difícil escolher – Entrou novamente no quarto, e lá de dentro continuou, num tom mais alto: – Você está preocupado?

Ele não respondeu. Talvez não a tivesse escutado, ou simplesmente ignorou. Já estava na terceira tira de barbante. Amarela.

– Você está preocupado? – repetiu.

– Não sei, não sei. Estou com medo, só isso. Nunca passei tanto tempo assim, longe.

– É só por quatro anos, a gente se acostuma. E, também, existe alguns métodos que tornam o sofrimento um pouco menor.

Ela arrancou os brincos, se olhando no espelho, e colocou-os na pequena caixa de madeira que estava a tanto tempo jogada no fundo do armário. Seria agora, por improviso, a caixa de joias. Andou um pouco pelo quarto, indo e vindo numa mesma linha imaginária, com uma mão levantada no rosto, na boca, como quem está pensando. Parou em frente à porta do guarda-roupas e pegou o vestido amarelo, de seda, que havia ganhado a uns três aniversários antes. Vestiu-o, e em frente ao espelho, com um pé no chão por completo e o outro somente nas pontas dos dedos, girava o quadril para um lado e para o outro, tentando se ver em todos os ângulos.

– Por que é que essa coisas acontecem? – Ela perguntou, ainda num tom alto pra que ele a escutasse no outro cômodo.

– Eu não sei. Talvez por puro acaso, ou eu sei lá. Sempre acontece com a gente. “A gente”, digo, todo mundo. Quando tudo está bem e parece que a paz chegou é aí que ela não chega. Cai tudo na nossa cabeça, de uma hora pra outra. – Disse, ainda concentrado na tarefa.

Quarta tira de barbante, verde, também em formato de arco, colado logo abaixo da amarela. Continuou:

– Lembra daquela minha antiga namorada, a Lara?

– Lembro sim. – Ela disse, mexendo novamente nas gavetas.

– Lembra de como éramos juntos, unidos?

– Claro. Ela costumava ir sempre na sua casa, quando vocês eram mais novos, lembro que você me disse.

– Pois é. Jurei amor por ela, já estava até juntando dinheiro pra que a gente pudesse se casar e alugar uma casa em algum lugar...

– E qual é o ponto?

– Ela conheceu uma mulher e, de uma hora pra outra, disse que o amor por mim havia acabado e partiu. Por uma mulher.

– Você nunca havia me contado isso...

– É que as coisas dão errado. Num dia está tudo bem e no outro acaba, você não vê? A gente não escolhe nada. Absolutamente nada.

Encontrou, por entre os cabides, um velho cachecol verde. Lembrou de quando o comprou, na pequena loja, simples, pendurado num suporte de madeira. “Quanto é esse, moça?”, e voltou no dia seguinte para comprá-lo. Como era bom aquele tempo, pensou. Claro que tinha algum problema aqui e outro ali, mas nada assim, tão monstruoso. Vivia com a mãe, casa pequena, mas não faltava dinheiro. Costumava ir à missa aos domingos, mas com o tempo foi desacreditando e desacreditando, conforme a vida foi chegando. Deus está morto, ouviu alguém dizer, e confirmou que, talvez, realmente o estivesse, ou pelo menos aparentava ter se esquecido dela por completo. Talvez. Melhor não pensar nisso. Melhor não pensar.
Parada, com o cachecol na mão, lhe veio o sentimento. Sentimento de saudade, de falta, de dor. A gente realmente não escolhe nada, pensou. Uma lágrima escorreu desde seus olhos até a ponta do queixo, e ela limpou. Chorava baixo pra que ele não a escutasse, e limpava, e escorria outra, e limpava.

– Vejo sim – Ela disse. – Vejo sim...

Quinta tira, agora azul. Ele fazia com todo cuidado, como se fosse de ouro, uma obra de um artista anônimo esquecido na vida, feito rato de poço. Rato de poço, pensou. Sou um rato de poço.
Tempo atrás ele começou a se ocupar, depois de perder o emprego. Pintou todas as paredes da casa com pincel pequeno, pra que demorasse mais. Gostava de pintar, e o fazia quase o tempo todo agora. Se não estava pintando, estava mexendo com cores, seja lá de que forma fosse. Cores, gostava de azul, mais que de todas.

– E onde ela está agora, a Lara? – Ela perguntou, ainda de dentro do quarto.

– Está morando na Europa, ganhando uma grana preta com essa outra mulher... Deve ser modelo, ou prostituta, não sei direito...

Ela ficou, por alguns segundos, olhando fixo para a cama, com o dedo indicador nos lábios, como quem está tentando lembrar de alguma coisa, até que finalmente disse:

– Onde está aquele nosso retrato, de quando a gente foi pra Floripa?

– Deve estar debaixo da cama, naquela caixa de sapatos. – Ele disse, enquanto começava com a tira de cor anil.

Abaixou, puxou debaixo da cama a caixa de fotografias. Abriu-a. Procurou, por entre as tantas fotografias, a que ela desejava, até que, enfim, encontrou e colocou dentro da mala, que a essa hora já estava quase feita. Pra eu lembrar de nós enquanto eu estiver lá, ela pensou. Pra eu lembrar de nós.

Tira de cor violeta. Só falta essa, ele pensou. Mas não quis colocá-la ali, colada junto com as outras tiras de barbante, e não o fez. Olhou o arco-iris em forma de barbante, incompleto, e logo abaixo o trecho que mais gostava daquela página arrancada. Talvez o trecho que mais gostava do livro inteiro, e até de todos os livros existentes. Com uma caneta esferográfica, grifou, com todo cuidado: “...que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira...”* e logo abaixo, o que ela havia se tornado: “...essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso...” *.

– Achou a caixa? – Perguntou, já levantando da poltrona.

– Achei sim, a foto já está na mala, que é pra eu lembrar de nós. – Ela disse, já andando em direção à sala, a mala na mão.

– Acabei o que eu estava fazendo. Quer ver? – Ele perguntou, com a folha de livro rasgada na mão.

Ela veio em sua direção, e quando os dois já estavam em pé, um na frente do outro, colocou a mala no chão. Ele a entregou a folha, que fez com que ela ficasse olhando o arco-íris incompleto, o trecho, a folha inteira.

– Nossa, é tão lindo esse trecho. Por que nunca havia me mostrado antes?

– Não sei... Você nunca foi de ler muito. – Ele disse, com a mão direita na nuca, como quem está sem jeito, ou tímido por algum motivo.

– O arco-íris. – Ela disse.

– Que tem o arco-íris?

– Está incompleto... falta a cor violeta.

E foi quando ele arrancou uma violeta do vaso de violetas, que ficava ao lado da poltrona, e entregou à ela. Agora está completo, pensou. Um trecho, as cores, uma flor que completa as cores com o nome, violeta. O arco-íris.

– Agora está completo. – Ele disse.

– É... Agora está... – Uma lágrima interrompeu sua fala, escorrendo pelo seu rosto. – Agora está completo.

Ela o abraçou, de uma forma que a muito tempo não o fazia. Deu-lhe um beijo na boca, daqueles tímidos, como se fosse o primeiro. Acariciou suas bochechas, nuca, as mãos, e disse qualquer coisa que os casais dizem quando estão se despedindo. As lágrimas salgadas, dos dois, misturaram-se nas faces e com a saliva nas bocas. Eu não quero ir, pensou. Mas não o disse. Não quero ir, quero ficar aqui, com você, te ajudar com as cores, com as pinturas, continuar transando com você todo fim de tarde, continuar alugando nossos filmes idiotas de amor que sempre me dão vontade de chorar no final e que me fazem te abraçar forte e pensar “o meu tá aqui o meu tá aqui meu amor tá aqui”. Mas não. Tenho que ir, tenho que trabalhar. Logo, logo volto. Quatro anos, quatro anos, pensou.
Ele a acompanhou até a porta, colocou as palmas das mãos em suas bochechas femininas, macias. Deram um último e longo abraço.

– Mande cartas, muitas cartas. Todo dia, todo dia, está bem? – Ele disse, ainda com lágrimas.

– Eu mando, mando sim. Mando todos os dias, todos os dias.

– Você vai voltar mesmo? Quatro anos?

– É claro que volto, meu amor. Claro que volto. Sempre volto. Você sabe, não sabe?

– Sei, sim. Sei, sim. – Ele confirmou, de cabeça baixa.

Ela lhe deu um beijo no rosto e partiu. Despedidas longas são piores, pensaram juntos. Caminhou em direção à estação de trem, com a violeta nas mãos, o papel, o trecho grifado, pra que pudesse lembrar de casa. Ele a observou caminhando até que o corpo se tornou um pequeno ponto perto do horizonte, um ponto caminhante que voltaria dali a quatro anos. Ela vai escrever, pensou. Ela vai escrever. Entrou de volta para casa e fechou a porta, atrás de si. Andou em direção ao quarto, quarto agora silencioso. Deitou na cama, que ainda estava com o cheiro das roupas e do corpo dela. Chorou. Chorou. Chorou. Chorou. Dormiu. Chorou. Dormiu.

16 comentários:

  1. são nove e vinte da manhã, estou sentado no meu trabalho, chorando feito uma criança. " Num dia está tudo bem, e no outro acaba. Você não vê? a gente não escolhe nada. Absolutamente nada." Isso é tão verdade. E meu Deus, dói tanto.
    Belo, perfeito, verdadeiro conto.

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  2. Caramba Lucas, os detalhes tocam o meu coração de uma maneira linda, estou emocionadíssima. Como sempre, está de parabéns. Muito bom mesmo.

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  3. Eis aí o verdadeiro amor ... Não há como empatar a vida de quem se ama prá valer ! Há que se respeitar o crescimento do outro, mas que dói, dói ! Eu choraria muuuuito se tivesse que me distanciar de um ser amado, ainda mais com prazo determinado, sei lá, acho que até pioraria !!
    Adorei como sempre, viu seu menino ?! rs
    Beijinhos de arco-íris !!
    Helô

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  4. Amei, mais uma vez, com o passar dos tempos, cada vez melhor.
    Beijo e os meus parabéns.

    =_0

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  5. Vixe, não sei porque não estão aparecendo, vou ver em minhas configurações :)
    Bjos

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  6. Quando leio coisas assim que acredito no amor.
    Parabens, como sempre geinal!
    AbraçO

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  7. Além da sagacidade do seu escrito, o que mais me chama a atenção é a pontuação. É ótima. Infelizmente alguns blogueiros não têm essa preocupação, mesmo tendo a noção de que a pontuação é fundamental no desenvolvimento da leitura.

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  8. Achei essa parte emocionante:

    Abaixou, puxou debaixo da cama a caixa de fotografias. Abriu-a. Procurou, por entre as tantas fotografias, a que ela desejava, até que, enfim, encontrou e colocou dentro da mala, que a essa hora já estava quase feita. Pra eu lembrar de nós enquanto eu estiver lá, ela pensou. Pra eu lembrar de nós.

    Deu uma vontade de mandar ele abraçar ela!!! Beijar e jogara a mala fora!

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  9. aaaaaaaaah que triste ( e lindo )vallim! não ia ler seu blog até terminar minha semana de prova, mas a declaração pra brenda no começo me fez esquecer as 40 páginas de geografia física que eu tenho que ler!
    Estava com suadades de ler seu blog! E esse texto me deu saudade de vocês!
    Como sempre, ótima escrita, bela história... lindo amor!

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  10. O que procuro quando leio um conto? Me ver. Me encontrar, ou talvez, sentir algo que esteja próximo a mim. Isso nem sempre acontece, mas aconteceu ao ler a sua história. Esse tempo de ficar longe, os sentimentos, tudo. Foi como se me olhasse num espelho.

    E valeu por seus comentários atenciosos, Lucas.
    Até mais.

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  11. Tou perando por mais, viu ? rs
    Beijocas de fã !
    Helô

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  12. Lucas,

    um romance belo, maduro. Sonho assim pra mim. Ele poeta, mesmo ela não sendo tão ligada a essas coisas - não lê muito, não sabia do Caio F. Mas ele constrói algo bonito e pinta o relacionamento no papel: um arco-íris que representa a aliança e uma violeta, ato te entrega, de ternura, de amor.

    Ah, como suas palavras caem bem, meu caro. Continue a escrever, sim? Obrigado.

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  13. Onde estás tu ?? Escafedeu-se ?? rs
    bjks
    Helô

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  14. Eu escreveria: "PUTA QUE PARIU", mas talvez iria desvalorizar tamanha beleza que o texto retrata.
    Ficou muito bom, muito mesmo, parabéns.

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