quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Deusa de Pedra


Era bonita, estática. Ainda enquanto o sol se levantava no meio do dia, formando uma luz intensa bem em cima da cidade, excluindo todas as sombras, ela ainda estava lá, no sol, parada, cinza, sem sombra. Passavam milhares de almas perdidas por ali, milhares de pessoas carentes, mulheres fumando ou com filhos no colo, mulheres misturadas com a multidão de homens de preto e maletas nos braços, que em quase todos os casos eram homens preocupados em chegar logo no escritório, pra fazer qualquer coisa que os homens de preto superiores mandassem, e assim. E assim sempre preocupados. Ela estava ali, parada, estática, bonita.
Bonita e estável, olhando fixamente para um ponto qualquer, como se não estivesse se importando com nada e ao mesmo tempo levando a dor do mundo nas costas, e aquelas. Aquelas pernas de pedra, numa pose imóvel sensual e extrema que só uma mulher consegue ter, imóvel, pra sempre, fatal, pra sempre, no meio da multidão. No meio da multidão e bonita. Tinha longos cabelos de pedras que não se mexiam, e os braços levantados, um com a mão na nuca, e o outro mirado pro ar, solto, leve e pesado, pesado de pedra. O quadril um pouco pro lado, como se estivesse dançando alguma dança tribal, indígena, rituais, danças, fogueiras, cantos, cantigas, danças. Um pé no chão e outro não, o outro levantado. Ela estava ali. Dançando imóvel.

I

Ela estava ali. Eu estava ali.

Todo dia, horário de almoço, eu passava por ela, com a maleta no braço, de terno preto. Me misturava no meio da multidão, sem saber pra onde iria, mas sabendo que seria pra perto dela. De pedra, a estátua de pedra. Tão bonita, e eu não sabia seu nome. Um dia pensei em chegar mais perto, perguntar oi tudo bem qual é seu nome?, mas não deu. Não tive coragem, à princípio. À princípio não tive coragem de nada, mas sabia de sua existência, e de tudo que ela retratava. A dança, a lua, a fogueira. Tudo. Era sempre ao meio dia, o horário que todos os Paulistas costumam sair dos iglus de cimento e janelas, e andar desesperados, como se estivessem com pressa, estando com pressa, em busca de um boteco qualquer ou algum restaurante caro, depende de quem. Depende de tudo. Tudo é assim, desesperado, na cidade grande. Rico ou pobre, desesperado. São Paulo.
Saí ao meio dia, e não lembrei que precisava comer, fui direto à praça do centro, onde ela ficava. A olhei por algum tempo, esperando que ela me olhasse de volta, e ela não olhou. Todo dia ficava na mesma posição, mesmo olhar, mesma dança, mesmo tudo. Toquei seus pés, com esperança de que ela se mexesse, mas era cinza, imóvel, gelado. Havia uma placa de bronze, bem embaixo, embaixo de seus pés, no quadrado onde ela estava dançando parada. Só havia uma data, mas não era possível fazer a leitura. Era velha, a placa. O bronze ficando preto, e as letras e números se desfazendo conforme o tempo passa. Sem sucesso, voltei pra casa. Voltei porque não havia mais nada pra mim, eu estava obcecado. Obcecado com a estátua de pedra. Ela é de pedra, foi esculpida, não tenho motivo pra amá-la, eu pensava. Pensava e mesmo assim voltava no outro dia. Por que você é tão misteriosa, por que? E nada. Ela não respondia, nunca respondia. Por que és tão bonita? Era estável, bonita.

II

Mas por que essa pressa toda?, me diziam. Diziam todo dia, e havia dias, todo dia, que eu não almoçava. Não almoçava pra poder vê-la. Cheguei um dia a tentar me posicionar bem onde o olhar dela estava se direcionando, pra poder fingir, ou acreditar, que ela estaria olhando pra mim. Mas não. Ela nunca olhava. Por mais que eu ficasse bem em sua frente, gritando hey hey hey olha pra mim, ela não olhava. Olhava em minha direção, mas não pra mim. Olhos cinzas, de pedra. Não pra mim. Parecia-me que olhava o horizonte, um olhar dançante, um olhar profundo enquanto ela estava dançando, imóvel, um olhar dançante enquanto ela estava profunda. Profunda em mim.
Seria grega, romana? Talvez moderna, brasileira mesmo, ou do chile. Talvez. Não sei. Procurei e procurei por Deuses e Deusas de toda a história e nada era parecido. Todos eram retratados em estátuas, mas ela era diferente. Era cinza, diferente. Ela dançava, e os Deuses não dançam, embora fosse interessante. Embora fosse interessante Deuses dançantes. Só acreditaria num Deus que soubesse dançar*, e ela dança. Minha Deusa dança, dança parada, imóvel. Minha Deusa dançando conforme o ritmo da cidade, acompanhando a pressa quase imóvel dos homens de preto. A rotina, segue a rotina. Dança Deusa, dança Deusa, dança, dança, dança. Não.

Não. Ela não dança. É uma estátua. Mas ela dança sim! Olha os pés dela, será que eu estou com algum problema? Ninguém percebe minha Deusa, ninguém percebe minha Deusa de pedra. Só eu, só eu percebo minha Deusa, bonita. Bonita.
Vejam, vejam aquele olho, olho cinza, já viram algum olho cinza? Já viram? Não. Não. Não. Não viram. E aquelas mãos de Deusas, que só as Deusas têm, já viram? Sim, está na nuca, mas dá pra ver um pouco, não dá? Dá sim, dá sim. E aqueles... espera. Passou mais um dia. Merda, passou mais um dia!
Mais um dia e eu não tive coragem. Não tive, mas amanhã terei. Talvez de noite, quando não tiver ninguém por lá. Depois do trabalho, não, não, depois do trabalho todo mundo tá indo embora, e os trens ficam cheios, lotados, cheirando a sovaco e vagina, odeio cheiro de vagina, mas não tanto, eu gosto, gosto sim se for parar pra pensar, mas não no trem. No trem é horrível. Horrível. Tem que ser depois. Meia noite. Não, meia noite é muito tarde, saio de casa onze e pouco. Isso. Resolvido. Onze e pouco é ótimo.

III

Eu juro, eu juro. Hoje vou pra lá. Está de noite, não vai ter ninguém no centro, a não ser os mendigos, mas eles dormem, sempre dormem, ou bebem. Bebem pra esquentar, pra esfriar, pra deixar alegre, pra acalmar. Mas não, não sou mendigo, não vou me afundar de novo numa garrafa de vinho, vinho caro, igual na época daquela vadia, vadia miserável que atrasou minha vida, da época antes, antes da Deusa, bem antes da Deusa. Vinho não, agora não. Depois talvez.

Abri a porta do meu quarto, olhei pro relógio, onze e quinze. Eu tinha dito onze e pouco, quinze é pouco, então saí aquela hora. Andei até a porta da sala, passos lentos, a lua estava cheia. Lua. Pensei em voltar pra cama, pegar um vinho e ficar ali, porque estava frio. Bem frio, e uma fogueira seria perfeito naquele momento. Ótimo, acenderia a fogueira quando chegasse lá, no centro. Não iria mais voltar. Comecei a caminhada.
Os miseráveis na rua dormindo ou bebendo, e eu não olhei nenhum nos olhos, estava guardando essa ação pra ela, só pra ela. De longe ouvia algumas melodias, bem de longe, talvez vindas do céu. Andei mais e mais e mais e eu a avistei de longe. Na mesma posição, dançando parada. A melodia aumentava e aumentava e aumentava e de repente os mendigos começaram a correr. Talvez trinta, quarenta homens e mulheres, miseráveis e fedendo, correndo na rua. Gritando, gritando, alegres, alegres sem motivos. A melodia aumentava, aumentava, e eu ouvia a flauta de madeira, e eles corriam, gritavam, os mendigos, e eu ouvia os tambores, e os gritos e as falas indígenas, todas vindas do céu. Uhh uhh uhh e reuniram-se quinze ao lado dela, da Deusa, e acenderam a fogueira, fogueira gigante. E eles dançavam em volta da fogueira, os quinze, enquanto os outros quinze ou vinte corriam em volta da Deusa, já nus, todos, homens e mulheres, e quando vi havia já uma outra fogueira do outro lado, e num lapso de tempo eu já estava nu também, correndo, pulando em volta da fogueira. Uhh uhh uhh eles gritavam, com vozes agudas, feito indígenas, e então eu comecei a gritar, numa melodia tribal, o som dos Deuses e das Deusas, ela dançava, e pulava, e dançava e a energia começou a subir e a lua ficou maior, a lua balançava e balançava e eu dançava. Até que.
Até que ela começou a rachar, a Deusa, não o corpo, mas os pés. As fogueiras já atingiam seis metros de altura, cada uma, e a mão da nuca se descolou e ela balançava a mão pra cima e pra baixo. A outra mão do ar também balançava, e balançava feito ondas de mar. Ela virou a cabeça, e por fim mexeu os olhos, já azuis, olhou pra mim, sorriu, desceu do quadrado da placa de bronze e pulava, pulava, pulava, pegou em meus braços, e a música estava alta, alta, a melodia estava alta, vindo do céu, a flauta, os tambores, agora haviam cinquenta vozes, feito corais de igreja, mas não eram de igreja, eram mendigos. E o vinho, o vinho, choveu vinho, e todos nós, nus, dançávamos na chuva de vinho e a fogueira aumentava inexplicavelmente. A sua pele cinza começava a ficar avermelhada, não do vinho, mas de qualquer outra coisa que vinha de dentro. Ela estava virando. Ela estava virando. Mulher. Mulher, minha Deusa. E eu a peguei no colo, pulando, dançando ainda, e depois ela também me pegou no colo, e me colocou no quadrado da placa de bronze, que agora estava nova, brilhante, com meu nome estampado e a data de nascimento, sem data de morte. Não pude mais me mexer, a melodia foi ficando baixa, baixa, até que eu não pude mais a escutar. E os mendigos puseram as roupas, e a chuva de vinho parou. E eu estava imóvel. Minha Deusa andando em direção ao horizonte, e eu parado. Parado. Fiquei cinza, imóvel, todos foram dormir, a cidade ficou em silêncio absoluto. Não conseguia mais a ver, e nem mexer os olhos. Eles ficaram grudados, meus olhos, olhando fixamente pro horizonte. Me imobilizei do ultimo movimento da dança, mão esquerda na nuca, mão direita no ar, leve e pesada de pedra. Um pé estava levantado, pra frente, enquanto o outro sustentava todo o peso do corpo. Corpo agora de pedra.
Passaram-se dias e dias, e uma moça, moça bonita, tocou no meu pé. Eu a senti, mas não consegui mexê-lo, embora ela tenha o tocado pra que eu o fizesse. Perguntou meu nome e eu não pude responder, mesmo querendo. Ela me disse que viria um dia de noite, mas até agora não veio, talvez um dia ela venha. Disse que eu sou um Deus, Deus de pedra, e eu não entendo. Não sou Deus. Não sou Deus. Embora eu saiba dançar, não sou um Deus. Minha Deusa também não era Deusa. Não há Deus algum em lugar nenhum.

Ninguém é nada, talvez todos sejam de pedra, e eu já não sei mais o que é pedra e o que é gente.

IV

É ela, é ela, a moça. A moça! Finalmente! Ela está vindo. Olha os mendigos, olha a chuva, olha a música! Olha a...
___________
*= Nietzsche

17 comentários:

  1. Ah, mas adoro ler o que escreves!

    Bjos e ótima quinta!

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  2. Não entendi... é seu? Ou de Nietzsch?
    Só sei que amei...fui me envolvendo com o clímax, no momento da dança até quando ele vira pedra.
    Muito bom. Muito bom.
    Clap! Clap! Clap!

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  3. Bonito texto!
    Foi interessante como você colocou o processo de petrificação dele, por uma hora eu pensei que a moça que chegou depois iria liberá-lo e ela iria se transformar em pedra.
    Muito bacana seu texto =D

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  4. ...ai my God!
    de onde vem tanta inspiração, lindeza?

    gosto de vê-lo passeando lá em casa.

    bjbj

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  5. Cara que texto show!
    A riqueza dos detalhes que coloca é de um talento unico!
    Choveu vinho e talento nessa postagem, até eu que sou de pedra me rendi!
    AbaçO

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  6. Lucas,

    gostei do conto, como um todo. O final achei que deixou a desejar. Pareceu um sonho doido, ou uma febre alta com delírios.

    Mas seu talento não desaponta, meu caro.

    Um abraço!

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  7. Lucas, vc tem alma de escritor... Cuida com carinho de seus contos... Publique um livro...

    São ótimos!


    Beijos!

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  8. E quando as pedras não falam, elas contam históras.

    Lindo conto.

    Bjo meu!

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  9. e as vezes eu penso, que somos hora pedra hora gente, porque o banal, foi posto à prova.
    belo conto lucas.

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  10. Ali estava...petrificada...
    É impressionante a imagem que resulta dessa descrição de Mulher "fatal!"
    Gostei de ler. Gostei...

    BShell

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  11. "Lucas, vc tem alma de escritor... " [2]
    ;*
    já te linkei,viu?!

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  12. Oi !!!! Gostei mas assim como alguns comentários aqui em cima,pergunto o mesmo:É seu ou do Nietzsche?

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  13. Parabéns, estou admirado em ler um texto tão belamente escrito!

    Essa poesia vive dentro de você, é um dom e assim como um pedido acima eu te peço, escreva um livro com teus contos!!!!


    Parabéns novamente!

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  14. Felipe, tudo postado aqui é de minha autoria. Apenas uma fras foi do nietzsche, aquela em itálico e com um asterisco no fim.

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  15. Se a primeira parte (antes da primeira divisão em capitulos) fosse uma poesia, eu diria que era parnasiana..

    Interessante é o contraste de, na correria urbana, alguem ter o tempo para admirar algo no horario do almoço, parece algo irreal kkkkkkkk
    A confusão de ideias, a agonia de pensamentos retrata bem um conto cosmopolita, muito bem feito.


    www.thiagogaru.blogspot.com

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  16. Haja imaginação, Lucas !! Vc dá vida até a uma estátua, é mole ?? rs Ao invés de vc ter virado "estauta" também, preferiria que tivesse terminado com um casamento e o tradicional "e foram felizes para sempre"!
    Dá licença pra eu tb delirar ?? rs
    Beijos petrificados !!
    Super original e criativo o seu texto, Lucas !
    Amei ...
    Deusa Helô !

    P.s. depois me diga qual o nome da praça, pra eu não passar nem perto e não correr o risco de me encantar com vc de estátua, e quiçá ainda vir a ser a "poróxima" ! rs

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