domingo, 10 de maio de 2009

Vermelho


Para ler ao som de:
Radiohead - Pyramid Song


Fase I

Era comum, embora desagradável, escutar ao longo do dia sua voz ecoando por toda a casa. Não que ele tivesse culpa - que na verdade ninguém tem -, mas seu jeito era assim, e eu não podia fazer muita coisa pra mudar. Aliás, não podia fazer nada.
A rotina era exata; Chegava do trabalho, entrava pela porta da frente, passava pela cozinha (onde minha mãe geralmente ficava), cumprimentava minha mãe com um beijo na boca, depois vinha pra sala de estar (onde eu geralmente ficava) e me cumprimentava com um beijo na testa. Depois disso ele tomava seu banho, e assistia TV pelo resto do dia.
Ele sabia ser gentil às vezes, o que não quer dizer que ele gostasse de ser, mas de qualquer forma fingia muito bem no começo.

Fase II

Começou a piorar, mas nada que fosse insuportável. A rotina, embora constante, já não era mais a mesma de antes; Entrava pela porta da frente, cumprimentava minha mãe e a mim com um simples aceno de mão, ou alguma frase do tipo “
oi-tudo-bem”, mal falada. Eu não conseguia entender qual havia sido o motivo da mudança, mas depois de um tempo não sentia mais falta dos beijos na testa nem de nada. Eu já estava mais velho, embora não muito, e quando a gente vai ficando mais velho aprende a lidar com diversas situações, se acostuma facilmente. O que eu quero dizer é que nesse tempo ele era uma pessoa fria, mas não chegava a ser arrogante nem desagradável. Era apenas frio, e eu me acostumei.

Fase III

Comecei a sentir, finalmente, as conseqüências disso que eu nunca causei. Experimentei a sensação de ser rejeitado, talvez mal-tratado, ignorado, e qualquer coisa assim. De frio, havia agora passado pra arrogante, quase insuportável.
Entrava pela porta da frente, já de cabeça baixa e falando sozinho - talvez reclamando de alguma coisa que só ele sabia-. Ao invés de cumprimentar, ele preferia insultar. Lembro do primeiro dia de mudança de fase;
Sua-vaca-mal-lavada, foi o que ele disse, assim, sem mais nem menos, à minha mãe, logo quando entrou pela porta da frente. Simplesmente olhou pra minha mãe e disse isso. Ainda nesse dia, logo em seguida, caminhou em minha direção, olhou bem no fundo dos meus olhos, e começou o discurso: “Por que você não toma vergonha nessa tua cara e vai trabalhar, fazer alguma coisa de útil nessa tua vidinha, em? Acha que eu te criei pra ficar pintando quadros, rapaz? Você acha que essas tuas pinturas de bicha vão te trazer alguma coisa, em? E aquele seu diariozinho de merda? Eu sempre o leio, viu? E de todas aquelas porcarias escritas, nunca achei uma que prestasse, sabia? Seu vagabundo. Eu com tua idade já ganhava meu próprio dinheiro, seu escroto. Com tua idade eu comia tua mãe, aquela vadia que tá na cozinha agora, e foi quando eu a engravidei. Toma vergonha nessa tua cara, seu bichinha... ”.
Não sei. Lembro que ele me sentou no sofá à força, e enfiou um charuto na minha boca. Disse “
Trague”. Perguntei qual era o motivo, e recebi de novo a mesma ordem. Sem saber o que fazer, traguei, e foi a vez que mais tossi em minha vida inteira. Claro que não havia vivido muito tempo até então, pois tinha no máximo doze anos. “Me prova que você é homem. Não agüenta com um charutinho? Agora vai experimentar isso. Toma”, e colocou na minha frente um copo de cachaça. Coloquei tudo pra dentro, forçado, sofrendo, e quando fiz cara feia, ele me fez tomar tudo de novo. Embriaguei-me acidentalmente, e dormi ali mesmo, no chão da sala.

Fase IV

Agressões físicas, a mim e à minha mãe. Eram constantes, praticamente todos os dias, a não ser pelos dias que ele não voltava pra casa. Provavelmente passava as noites em algum bordel, ou o que quer que seja. Mas quando voltava, agredia a gente sem motivo nenhum, como se fosse um prazer ou um hobbie. Teve tempos em que ele me batia com uma vara de pescar, e também com chicotes de couro, que eu nem imagino onde ele havia arrumado.
Em minha mãe eram coisas mais pesadas, talvez pedaços de pau, pedras, ou mesmo chutes, socos, e coisas ainda mais criativas, dependendo de seu humor, ou da quantidade de cachaça, entorpecente, ou qualquer coisa que ele tivesse mandado pra cabeça.
Diversas vezes ouvi, “
Filho, não esquenta não, tá bem? Logo a gente sai dessa vida, só espera a mamãe ser promovida no trabalho, aí a gente sai daqui pra bem longe, viu? Não responde nada, não. Deixa assim, como está, dê a razão pra ele sempre, talvez assim um dia ele canse.”, ela dizia, minha mãe. Sempre a escutei com toda atenção, e por muito tempo a gente aguentou os socos e pontapés de meu pai.
A gente também via os pequenos rastros de sangue seco, que já havia infiltrado nas paredes e em uma boa parte do piso da cozinha. Ele nunca se cansou. Nunca. A quantidade de sangue seco só aumentava, aumentava, e aumentava a cada dia. Pensei na possibilidade de limpar tudo e deixar novamente as paredes e o piso brancos, assim como eram e assim como tinham que ser. Mas não. Se eu limpasse, no outro dia estaria do mesmo jeito, ou até pior, portanto a gente nunca limpava. Ficavam ali, aquelas manchas vermelhas em diversos formatos. Lembro que num canto tinha uma que parecia um elefante, o formato, e era a que eu mais gostava.

Fase V (Final)

Barulho de porta; ele havia chegado. Ficou um tempo parado em frente à entrada da cozinha, talvez uns quatro minutos, encarando minha mãe com os olhos vermelhos, talvez de algum álcool, raiva, não sei. Sua respiração estava ofegante, como se ele tivesse corrido trezentos quilômetros fugindo de uma tropa de exercito, sem parar. E foi quando eu a vi, a pistola. Era uma 38, daquelas antigas, mas era evidente que funcionava perfeitamente. Escutei o
cleque do gatilho, e logo em seguida cinco disparos, que foram bem no meio do rosto de minha mãe.
No delicado lugar onde um dia se encontravam os belos olhos verdes, a pele branca e os cabelos castanhos lisos, agora só se via um grande vermelho. Não houve gritos, nem gemidos, nem nada. Cinco disparos; corpo caído no chão; morte.
Nesse momento corri em direção à cozinha, e ele estava com os olhos ainda vermelhos, e a pistola na mão direita, já abaixada. Estava parado, imóvel, olhando aquele rosto desfigurado que um dia foi de sua menina. Me veio uma sensação de morte, aquele característico cheiro azedo que a gente costuma encontrar nos funerais e nos enterros. Eu obviamente sabia, ela estava morta.
Sem pensar, agarrei no pescoço de meu pai com a força de homem crescido que eu já tinha, e ele nem sequer reagiu. Derrubou a pistola no chão, e foi nesse momento que o senti desistindo de tudo. Fechou os olhos, bem devagar, ficou cada vez mais vermelho - não só os olhos, mas o rosto inteiro-, e eu não soltei seu pescoço em nenhum instante, até que já o havia matado. Ele caiu no chão, bem do lado do corpo de minha mãe. A posição coincidiu com a que eles costumavam ficar, antes de dormir, havia muitos anos atrás, quando eles eram estupidamente apaixonados, e quando eu era ainda uma criança. Mas agora, de todo o sono, tinha só morte. A criança cresceu, o sonho acabou, e terminamos assim.
Olhei pro chão da cozinha, e eram meu pai e minha mãe mortos. Como um breve e estúpido conformismo, preferi acreditar que tudo havia acabado para um bem maior; minha mãe havia parado de sofrer, e eu estava livre de toda tortura. Sobre meu pai, bem, eu nem me importei.

Sobre o fim da Vida e da Morte

O vermelho na cozinha era intenso, e não era o vermelho das antigas manchas de sangue seco, nem das maçãs e tomates que repousavam silenciosamente sobre a mesa. O vermelho era de sangue; puro sangue vivo. Escorreu lentamente por entre meus pés descalços, dançando feito uma cobra, e foi descendo aos poucos pelo pequeno ralo que havia ali no chão. Aquele sangue – a vida de minha mãe - escorria pelo ralo, como se nada estivesse acontecendo, e eu já sentia o cheiro de carniça e de morte inundando a casa do início ao fim. Por alguns instantes eu me perdi, fiquei imóvel diante da morte dos dois corpos que me deram a miserável vida que eu tinha, e por fim estavam indiferentes um ao outro, e indiferente também à minha presença. Sentei no chão, junto do sangue e dos corpos imóveis, debrucei-me sobre o peito encharcado e vermelho de minha mãe; Chorei.

34 comentários:

  1. Eu quase chorei também! Não sei onde vais buscar tanta imaginação... Está lindo!

    Parabéns!

    beijinho*

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  2. Putzz!

    Lendo imaginei tudo como se estivesse presente. Vc escreve com tanta intensidade que até o cheiro foi possivel senti.

    Perfeito e envolvente!


    Um abraço querido!

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  3. casamento perfeito, radiohead faz qualquer coisa ficar 'leve'[ou menos triste].
    beijos

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  4. Adorei o texto!

    Vc é mto bom!!!

    Bjos em teu coração!

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  5. ...se não fosse tão trágico,
    eu diria que esta fantasia
    extrapolou todos os limites
    da realidade..

    ou não será?

    bjs

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  6. você é um ótimo cronista!
    texto perfeito!com a música então..
    voltarei aqui mais vezes.
    ;*

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  7. Lucas...
    O texto é ótimo...me senti ali...
    Adoro escritores que tem esse poder...te fazer sentir parte do conto...
    Parabéns!
    Babi

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  8. Maravilhoso!
    Ótimo conto, um texto envolvente, de muita criatividade e ótima escrita.
    Retratou muito bem algo que acontece muito em nossa sociedade, esse tipo de violencia a cada dia cresce mais e há grande tendencia de termos finais como esses na vida real tbm.
    Parabens!
    AbraçO

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  9. Vc é sempre mto contraditório Lucas.

    Qual é a sua opinião( a respeito do texto "Mais que isso?" Vc disse pensar diferente...

    rS...

    Bjos e uma semana de mta inspiração pra vc!

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  10. Como sempre intenso, bem escrito e real ! Fico louca prá chegar ao final, e nem sempre feliz com os trágicos finais, mas ... é justamente aí o que torna os seus contos mais próximos do real !
    Bela semaninha, mas de final feliz ! rs

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  11. Venho aqui sempre cheia de esperança de encontrar algo novo, e quando chego, me deparo com os melhores contos que já li, que me levam a lugares que nunca pensei em ir antes. Que do lugar de onde você tira tanta coisa boa sempre haja mais, amo seus textos.

    Beijos,

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  12. Que lindo o texto.
    Ah, sou chorona, não valeu! Eu quase chorei :B


    adorei :}

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  13. Muito bom!
    Com trilha sonora então...
    Sabe quando a gente viaja pra dentro da história?
    Bem assim que me senti! ;)

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  14. 'Você tem uma habilidade de nos trnsportar para aquele cenário de uma tal forma, que parece-me estar dentro dele! É incrivel, quase chorei com esse conto, muito bom!
    Parabéns! :)

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  15. A-D-O-R-E-I!
    A música foi ótima.
    Você é muito bom, rapaz.

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  16. Nossa! A ignorância, a maneira do personagem me deixou pasmo,
    A maneira de ele agir com relação a um artista, ou a própria arte, e ainda por cima
    Arrancar de um ser, aquilo que foi lhe dado por um Ser Superior “DEUS” cabendo só a ele tirar da mesma, a vida. E levando a outro tbm a tomar a mesma altitude. Até onde o ser humano vai chegar com tanto ódio e ignorância em seu coração? Belíssimo o seu conto.

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  17. Passando pra conhecer seu espaço.
    Voltamos com calma.

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  18. Nossa... Isso chegou a quase doer sabia?!
    Vou voltar muitas vezes aqui.
    Isso é forte. Mas não quer dizer que seja ruim.

    Beijo grande.

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  19. As vezes desistir de tudo pode parecer errado, porém, creio eu que nada pior do que a rotina atraves dos anos. Obrigado pelo selo!

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  20. Garotoooo!!
    Fantastico,adoro te ler, me facina, eu viajo. Vira um filme na minha kbeça!!
    Incrivel...esse seu dom é fenomenal...

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  21. Meninoo...
    vc escreve muito...
    to te add nos meus favoritos

    ameei seu conto
    passa no meu blog tbm
    http://monicaeseumundo.blogspot.com/

    bjão

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  22. Oiiieee
    Obrigada pelo comentário, e que bom que você gosta dos meu textos..sabesempre quis escrever contos, mas não consigo..coloco minha opinião em tudo...kkk não tem geito...
    Seja sempre bem vindo!

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  23. Na escolha de uma fase a 2 é um misto do que eu já fui

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  24. Acho que fica bem monótono e banal eu sempre vir aqui e escrever as mesmas palavras de elogio, não? Mas que posso eu fazer diantes de tais textos?
    Gosto demais! E sabe, tô lendo/conhecendo Nelson Rodrigues e sabes que comparo bastante. A tragédia, a família, a banalidade... com suas particularidades.
    Beijos ^^

    ;**

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  25. Sim e essa música eh show! Radiohead eh massa^^
    =*

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  26. ...vim lhe ver e agradecer as
    visitas sempre tão assíduas
    e carinhosas lá em casa.

    bj, bj, lindo!

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  27. Você ouve Radiohead e o mundo está salvo. Valeu pelas visitas ao afeto. Hoje passo pra deixar um beijo e dizer que venho ler depois. Peguei uma gripe horripilante, mas assim que voltar ao normal, darei a devida atenção ao seu blog. E isso não é promessa de político. =)

    That's it.

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  28. tá sendo difícil encontrar sui generis como tu!
    parabéns! to pasma!

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  29. Meu, não é por que eu sou sua fã numero Um, mas tipo:

    MEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU.
    sério Vallim, ficou tão perfeito.
    E o mais interessante, é poético e trágico ao mesmo tempo!

    é o que eu sempre falo:
    és meu preferido, e sabe bem o que faz!

    sorte, sempre:*

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  30. muito interessante a evolução da maldade e de um crime anunciado.
    o vermelho deve ser a cor mais forte e marcante de todas...


    www.thiagogaru.blogspot.com

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  31. Nossa, que história mais triste.

    Mas eu gostei da forma como você escreve, e volto pra ler depois.

    Um Abraço!

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  32. Texto forte... Até mesmo desconcertante!...
    Considerando que a palavra "texto" está intimamente ligada à idéia de tecer, posso afirmar que vc é um grande tecelão: entrelaça o visual e o verbal como poucos!

    Um abraço!

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  33. Belíssimo... uma suavidade e uma força em medidas necessárias...

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  34. Completamente sem palavras!

    Senti como que num quantinho de todo aquele aparato eu estivesse lá, foi lindo, magnífico, simplesmente único.

    Beijo

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