segunda-feira, 4 de maio de 2009

O Quarto 74


Foi depois de ficar parado um bom tempo em frente à entrada principal, que resolvi entrar. Como qualquer outro hospital, aquele tinha um cheiro característico, que me lembrava um pouco o cheiro daqueles produtos de limpeza, e no meio desse cheiro era possível sentir algum outro que vinha da tristeza, ou do tédio, talvez do desespero das pessoas dali. Fui caminhando lentamente, analisando cada detalhe - As paredes brancas mal lavadas, as cadeiras de rodas com acentos de couro descascados, talvez couro podre, se é que, assim como a carne, o couro apodreça.
O silêncio alimentava o cheiro de desespero, e por entre esse silêncio eu ainda conseguia escutar uns leves ruídos, talvez de sapatos brancos de médicos caminhando à sala de espera para dar alguma má notícia à alguém, mas não tinha idéia de onde vinha, o ruído. Agora, uma enfermeira.

- Pois não, moço? - Ela disse, olhando pro outro lado, pensando em alguma outra coisa qualquer.

- Eu sou o Sérgio, liguei agora há pouco avisando. Sabe se ela já está aqui, minha irmã?

- Sei não. Olha, o quarto é no fim do corredor, o número 74. - Saiu, com pressa e sem se despedir.

No percurso até o fim do corredor, havia diversos outros quartos, com o mesmo cheiro de hospital e com o mesmo silêncio. Lembro que naquele exato momento, enquanto eu olhava quarto por quarto, um paciente tinha morrido. Eu parei. Talvez por curiosidade, ou qualquer coisa assim. Era uma criança, deitada, imóvel, sem respirar. Dava pra ver, pela feição intacta, que aquela garotinha havia passado por muito sofrimento, logo no começo da vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro. Além da morte, havia o branco intenso no quarto e, aliás, em todos os outros quartos. Naquele momento desejei um hospital colorido, com cada azulejo de uma cor, as enfermeiras de rosa, outras de azul, os médicos de amarelo, e a garotinha, ao invés de pálida, com a pele rosada, assim como deveria estar.
Em volta dela tinham três pessoas, imagino que fossem os pais, e talvez um irmão. A mãe, de lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha a abandonado havia muito tempo. O outro garoto, o irmão, estava sentado no chão, manuseando uma miniatura de carro - única coisa que não era branco no quarto, era amarelo -. Imagino que naquele momento o garoto nem imaginasse o que estava se passando, e sinceramente, é bem melhor nunca saber de nada. Bom mesmo é criar um mundo imaginário, entrar num carro amarelo e percorrer o mundo inteiro, e tudo isso dentro de um hospital, com a irmã morta bem do lado. Por vezes quis não saber de nada, não me preocupar, só viver, e mais nada. Ele não sabia de nada. Finalmente, o pai. Ele estava com o braço direito envolvendo os ombros de sua esposa, sem chorar e sem nada, embora, por dentro, ele estivesse quase explodindo, ou talvez pensando em se jogar pra fora da janela. A porta do quarto foi fechada ao perceberem minha presença. Não os culpei por quererem um pouco de tempo sozinhos, naquele momento tão raro. Não tinha o direito de culpá-los, nem de nada.

- Sérgio! - Escutei uma voz vinda por trás. Era Ana, minha irmã. - Desculpe, estou atrasada. E como tá?

- Cheguei agora também, ainda não o vi.

Caminhamos lentamente até o quarto 74. O corredor era bem grande, e os quartos eram ordenados numericamente. Estávamos, naquele momento, em frente ao quarto 13.

- Por que acontece, será? - Falou, olhando pro chão.

- Nem imagino. Estou apenas deixando pro tempo o que é coisa dele. - quis abraçá-la, mas não o fiz.

- É tão difícil. O que a gente fez pra merecer? Essas coisas são injustas. Tanta gente ruim no mundo e é a gente que paga, sem ter dado motivo nenhum? - Vi um brilho em seu rosto, mas era só lágrima, a tristeza saindo desesperadamente pelos olhos, andando lenta pela face, e transformando tudo em angústia, pra depois se desfazer no chão feito gota d´água, assim, como se nada tivesse acontecido.

Eu não sabia o que responder, então fiquei em silêncio, respeitando sua tristeza, embora eu estivesse exatamente do mesmo jeito. Agora era eu e ela, minha irmã, no mesmo corredor. De barulho só havia os nossos próprios passos, e o delicado barulho - quase inaudível - de lágrima se espatifando no chão.

- 74, é esse - disse enquanto enxugava, delicadamente, cada gota que havia saído de seus olhos.

Ficamos um tempo ali, olhando para aquela porta, que por acaso era branca. Por um minuto eu me perdi, pensei em desistir, sair correndo e voltar pra minha casa, gritando e libertando tudo de ruim que estava bem no meu peito. Eu sentia como se ele - meu peito - fosse explodir, como se tivessem o enchido com cem batatas, mesmo não havendo espaço nem pra duas. Queria pedir socorro, mas não tinha quem pudesse me ajudar, nem apoiar, nem nada. Era uma situação delicada, aliás, delicadíssima. Olhei pro lado, Ana estava imóvel, olhando incessantemente para o número 74, bem em cima da porta. Foi nesse momento que a porta se abriu.

- Olá, sou o Dr. Flávio. Vocês são Sérgio e Ana?

- Sim, somos - Respondi, serenamente.

- Imagino que a situação já tenha sido explicada, mas de qualquer forma, aconteceu hoje, às cinco da manhã. Seu pai já estava fraco, era improvável que aguentasse mais uma cirurgia tão complexa. Não houve dor, morreu enquanto estava dormindo. Sinto muito. - Saiu andando, com o típico jeito frio que os médicos costumam ter, e um papel na mão, fazendo anotações.

Eu o vi ali, deitado, imóvel naquela cama. Dava pra ver, pela feição intacta, que ele já havia passado por muito sofrimento, nesse fim de vida. A pele já estava começando a ficar pálida, combinando artisticamente com a cor da parede, teto, janela, porta, cama, lençóis, chão, e tudo que havia no quarto, e no hospital inteiro.
Comecei a lembrar de tudo que a gente havia passado juntos. Ele que me ensinou a ler, escrever, e mexer na velha máquina de datilografar. Era curioso o jeito dele de me ajudar. Quando eu estava muito triste - muito mesmo -, ele não tentava me deixar feliz, nem nada. Ele deitava do meu lado na cama e se entristecia junto comigo. Chorávamos feito duas crianças, e ele nem sabia o motivo. "Eu fico triste com a tua tristeza", ele dizia. Isso me confortava mais que qualquer coisa. Não o fato de ele ficar triste, mas sim a certeza de que ele era meu único amigo, embora eu conhecesse centenas de pessoas que se diziam "amigos". Foi também quem, com enorme paciência, me contava histórias por todas as madrugadas de sábado pra domingo. Um dia me contou como conheceu minha mãe - também já falecida -, e contou detalhe por detalhe. Ele disse que a boca dela tinha gosto de morango com açúcar, e que os cabelos lisos e pretos pareciam com as cachoeiras de onde eles costumavam acampar, quando jovens. Contava da pele branca. "Era cor de leite sem ser pálido. Um branco bonito", ele dizia. Conheceram-se na escola, bem novinhos, e ficaram juntos até que a morte chegou em nossa casa. Mamãe havia morrido. O que eu sei é que era amor, e dos grandes. Eu gostava dele, do meu velho.

Ana não aguentou. De lágrima, já não tinha nada. Chorava à seco, babando, descabelada, implorando a um Deus que já tinha nos abandonado havia muito tempo. Envolvi, com meu braço direito, os seus ombros, sem chorar e sem nada. Pensei em fugir, talvez me jogar pela janela, e foi nessa hora que vi um rapaz, parado, olhando pra gente. Continuou ali sem falar nada, e foi então que eu o chamei pra dentro do quarto. Era o pai da garotinha. Choramos - Eu, Ana, e ele - até o fim do dia. Ele por não poder ser pai, e eu por ter perdido o meu, assim, tão de repente.

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Ganhei o selo da Carol, autora do blog Por Escrito.



Vai para José, ótimo escritor e autor do blog Vítimas do Tédio


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20 comentários:

  1. Caramba, quanta emoção, me deixou um tanto triste, nem deu pra controlar as lágrimas, mas gosto disso, gosto muito daqui.
    Parabéns Lucas, belíssimo texto. AMEI!

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  2. Oie Lucas, ja havia alguns posts que eu nao aparecia o que ja me deixava triste, hoje com esse texto pra mim tu mostrou mas um face do teu talento.Querido amigo eu gostei muito do teu conto, me fez lembrar de muitas coisas, foi sublime meus mais sinceros e já conhecidos Parabens!!!

    PS. espero que possamos nos falar hj!beijos

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  3. Lucas, que exercício esse o seu, hein??
    Caramba!

    Texto denso demais...

    Parabéns!

    Beijos!

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  4. Cara, a cada dia seus textos me surpreendem mais.
    Esse foi muito triste, pesado e carregado de emoção. Muito bom, muito bom mesmo.

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  5. Olá moço, vi que pisou em meu chão e que por lá plantou palavras boas.
    Só me desculpo pela demora em responder-te.

    Meu coração agradece e espero que retorne em minha casa, pois sua visita é desde hoje e desde sempre muito bem vinda.

    Masssss, menino!!
    Me surpreendi aqui. Claro que ainda não tive tempo de ver o seu cantinho com o carinho e mais atenção que merece, mas os textos que li, realmente me arrepiaram!

    Bom encontrar pessoas, espaaos como vc, como o seu! É quando percebemos que esse mundo aqui, nem é tão virtual assim!
    É aconchegante e alcança o que de mais sutil temos em nós.

    Gostei da sua caneta.
    Vou te plantar lá no jardim de casa, se não se importar. E tbm preciso seguir teus passos. Pra não te perder de jeito nenhum! srrs

    Voltarei, então...
    um até breve dessa já sua amiga desconhecida desse nosso mundo de escritores e poetas!

    Abraços, flores e estrelas...

    Carinho,
    Sam

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  6. Lucas, não tava conseguindo receber nada que tu falava, tu deve ter achando que nao queria ter falando contigo... ahh tem selinho pra ti lá no meu blog!
    beijos ate de noite

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  7. Oi, to passando pra conhecer seu blog, bjs boa semana

    aguardo sua visita :)

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  8. adoro as descrições, nem poucas, nem extensas e tediosas, na medida certa. O texto transcorre feito um curta metragem, foi aí que eu pensei... vc já pensou em escrever roteiros? não seria má idéia! aliás, seria uma ótima idéia!

    beijoo

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  9. Nossa... você escreve muito bem. Seus textos me deixam um tanto quanto reflexiva, são bem reais... um conteúdo meio de conto, com reflexões, mas tão real que parece algo cotidiano seu, como uma crônica. Talento nato!
    Gosto demais daqui^^

    beijos
    ;*

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  10. E eu, ao terminar de ler essa história tão triste, mas bonita.

    Eu senti arrepio nas tuas descrições de hospital e pude sentir o cheiro acre que tem dentro dele. Eu vivi um mês dentro do hospital, visitando meu coração que tinha se ferido (veja abril/08). Meu amor tinha batido num poste, eu rezava fielmente todos os dias para que este fim, o da garota e o do pai de Sérgio e Ana, não ocorresse. Felizmente, pro rapaz, não ocorreu. Mas o amor, esse ficou perdido nas paredes brancas de um hospital...

    Tu escreve tão bem!

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  11. Oi Lucas, passei pra desejar otimo dia
    bjss

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  12. Selo muito merecido viu?! Você escreve muitooooooo bem ! O primeiro de muitos prêmios !!!!!!!
    Obs:Texto triste...

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  13. Putzz!

    Lagrimas de emoçãoes e uma saudade incrivel esse texto despertou em mim agora.


    Perfeito!


    Bjos meu poeta!

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  14. Um despertar saudosista. Uma melancolia surgida, mas daquelas agudamente boas. Lirismo exacerbado. Ótimo.

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  15. Seu conto retrata parte da fragilidade humana.

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  16. infelizmente não tenho tempo de ler todo, mas eu volto aqui, e leio com mais calma!
    o que li, adorei!
    bjs

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  17. Completamente sem palavras!
    Quanta sensibilidade, quanto desejo de virar costasaos problemas, mas não o fez, lutoy contra eles, com todas as forças. Amei a parte do carro amarelo.

    E por breves momentos pensei mesmo que enquento os tres estavam chorando eu também estava lá, espreitando pela porta, mas me sentindo um pouco aparte da situação, pois quem era eu, no meio de desconhecidos a tentar ajudar?

    Amei o texto:D
    Continua teu bellíssimo trabalho.
    Beijo

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  18. Meu deus. Acho que nunca chorei lendo um texto.
    Perfeeeeeeeito demais *------*

    Você escrevee muuito bem! Parabééns! :D

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