quinta-feira, 21 de maio de 2009

Incondicional


Para ler ao som de:
Radiohead - Videotape

_____________

...Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!”...

Eu já não me importava mais se a escova no banheiro estivesse repleta de cabelos seus e eu tivesse que tirar fio por fio antes de pentear os meus. As roupas sujas espalhadas pelo chão não mais incomodavam, e eu desviava peça por peça até chegar na pia e olhar no espelho sujo e manchado aquela minha cara coberta de máscara. Tinha já trocado meu perfume, minha pasta de dente, minhas roupas, não mais usava meias vermelhas e nem comprava camisas listradas, muito menos xadrez. Já não sabia se eu era eu ou você, ou outro alguém que eu nunca de fato conheci. Era simples; Você falava, estava falado, e pronto.
Você já não me entendia e exigia que eu te entendesse e mergulhasse de ponta-cabeça por entre sua vida e seus costumes e eu não estava muito pra coisas alegres naqueles tempos. Na verdade era aquela alegria alheia que infestava a tua casa, a cidade, as lojas, a padaria, você, teu pai, tua mãe, tuas irmãs. Aquela alegria alheia é que era insuportável, pelo menos naqueles tempos.
Lembro quando a gente brincava de ser triste. Você fingia que chorava e eu chegava devagar, tirava suas roupas lentamente e lambia tua cara e teus peitos e você gostava e a falsa tristeza passava. A gente contava um pro outro histórias e histórias e daí pra frente a tristeza virava alegria, mas era alegria de verdade, vindo de uma falsa tristeza. Era estranho, e eu gostava, mas depois de um tempo você não queria brincar mais. Não mais. Não brincava porque agora a tristeza não era mais de mentira, e quando a tristeza não é de mentira não dá pra gente brincar e nem fingir que está feliz. Fica por isso mesmo, na tristeza.
No começo era bom, sim. Era sempre bom quando a gente não se amava tanto. Eu te amava só um pouco, não muito. Gostava mais do meu cigarro, do meu diário, menos de você. Era uma coisa saudável, "Eu te amo, mas não tanto", "Eu também te amo, mas não tanto" e agora tudo mudou. Agora só conseguia dizer "Te amo eternamente e incondicionalmente por todo o resto de minha vida e trocaria qualquer coisa por você até mesmo eu mesmo e eu nem me importaria se eu não existisse pra que você pudesse existir". E você respondia assim desse outro jeito "Eu te amo incondicionalmente mas ainda resta uma condição, a de que você me aceite e aceite junto comigo todos os meus compromissos e tudo que eu prezo pra minha vida". E o incondicional passava a ser condicional e eu já não entendia mais nada e preferia acreditar que eu era o grande amor de sua vida e pronto. Mesmo sabendo que você tinha outras coisas e que amava essas outras coisas também além de me amar. Ninguém me avisou que junto com você viria tudo isso, e veio.
Veio mas meu problema era outro. Problema era eu te tornar um objeto, colocar meus braços em sua volta e te abraçar forte, pra que você nunca mais saísse. Você se revoltava, mexia teu corpo incessantemente pra que eu te soltasse e gritava palavras fortes “me solta, me solta, canalha!” bem em meu rosto e eu era obrigado a te soltar. Eu pensava incessantemente “não sou canalha, não sou canalha, não sou canalha”. Não era canalha. Não. Parecia ódio, mas era só amor. Quis um dia te prender em minha cama pra sempre e te dar comida e banho e lamber tua cara e teu peito de novo e criar histórias e histórias e histórias, mas não deu.
Te queria como uma fruta. Fruta sensual e venenosa que você era. Me fazia morder desesperadamente cada pedaço e tomar cada gota do líquido que escorria pela sua polpa. Do teu gosto amargo eu só sentia o doce, e da tua textura áspera eu só sentia a lisa. Lisa como água, como mel, como qualquer coisa assim. Me iludia. Seu suco me envenenava pra depois me fazer sofrer, enquanto meu corpo desesperadamente ia tentando expulsar o veneno através de lágrimas ou de gritos, sempre à noite. E quando eu finalmente conseguia me curar e me sentir livre de você, era aí que você aparecia de novo e eu freneticamente mordia o teu corpo de fruta venenosa de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de nov, e de no, e de n, e de, e d, e...

Agora eu fico aqui, sentado em tua cama, chorando de verdade e fingindo estar chorando de mentira e triste de verdade e fingindo estar triste de mentira. Só assim você vem me alimentar e me banhar e lamber minha cara e meu peito e dizer que eu estou triste de verdade e que preciso brincar brincar brincar de ser feliz e que sou tua criança e você é minha criança e assim a gente cria histórias e histórias e eu já nem me importo mais. Sei que você também está triste de verdade e finge estar triste de mentira pra ter pretexto pra brincar de ser qualquer coisa menos de ser triste, e eu te entendo. Isso é confuso mas eu entendo. Te entendo. Antes me importava e não entendia, mas agora nem me importo mais, e entendo. Você sempre vem. Você sempre vem. E a gente já nem sabe se é feliz ou triste de fato. A gente nunca sabe, nunca soube.

Melhor é ficar na dúvida eternamente, incondicionalmente. Incondicional.


30 comentários:

  1. ...incondicional
    só amor de mãe.

    o resto é troca.

    e você tem o dom de brincar
    com as palavras, de maneira
    singular.

    adoro

    adoro

    adoro

    bjbj

    ResponderExcluir
  2. "...Incondicional só amor de mãe, o resto é troca."

    mesma opiniao pro mesmo texto, que alias é muito bom.

    ResponderExcluir
  3. Estou aqui, nos teus territórios. Cheguei pelo blog da Avassaladora. Estou lendo e ouvindo a música, seguindo seus movimentos, tomando contato com tuas palavras, muito bem escritas por sinal.

    Um abraço

    ResponderExcluir
  4. Eu entendo incondicionalmente incondicional, eu entendo.

    Diferente do comentário aí de cima, não sei como parei aqui e não quero nem saber (sou abusada) vou vir sempre.

    ResponderExcluir
  5. Só deu para falar "uau" e soltar a respiração pesada após ler o texto! Fiquei presa ao imaginar a cena...

    E esse incondicionalmente, acho que nem amor de mãe pode oferecer (e não venham me jogar pedras por isso xD). Não deixou de ser uma situação de cumplicidade e troca... cada um de um lado, depois invertendo-se!


    Ótimo conto Lucas, como disseram acima, tens a capacidade de brincar com as palavras.

    Beijo!! ^^

    ResponderExcluir
  6. Ah, pôxa. O que há de bom num relacionamento assim, dessa maneira? Ele sugou tanto ela - fruta, nas mãos dele - que quem desapareceu não foi ela e sim ele, de fato, que incorporou tanto a fruta a ponto de estar impregnado dela, inteiramente.

    Nesse romance, não houve troca. E acredito que não deve ser assim. Que a tristeza seja chutada, pra longe, pra sempre. Que a dúvida escorra pelo ralo infétido desse desamor. E que eles desatem as mãos, por um instante e caminhem só. Antes assim.

    Lucas, tô linkando seu blog. Realmente, são fascinantes suas palavras. Voltarei mais vezes.

    Abraços!

    ResponderExcluir
  7. Estou encantada com sua escrita.
    Conto tao bem articulado e desenvolvido que lamentei ao chegar a ultima linha.

    BeijOs

    ResponderExcluir
  8. meu deuus, que inveeja. tu escreve beem demaaaaaais!!!!
    perfeito perfeeito *-*

    beeijo :*

    ResponderExcluir
  9. Ou...bom fim de semana...

    to perdida no tempo

    rs

    ResponderExcluir
  10. A repetição...a tua repetição: Enfatiza...enfatiza!

    Não gosto de explicar, mas eu sinto.

    E eu sinto! Senti! E adoro...adoro!

    [ahh...nada é mais verdadeiro e incondicional que lambida na cara..rsrs]

    Boa semana =)

    ResponderExcluir
  11. O amor e a entrega...Tu consegues escrever cada detalhe com muita realidade, já vivi isso. Foi intenso, muito intenso.

    Bjos moço!

    ResponderExcluir
  12. Que texto lindoooooooo e como tens facilidade de encantar!!!

    Bjos em teu coração!!!

    ResponderExcluir
  13. E então, o que era saudável tornou-se doentio.

    Deixando de lado os elogios ao texto, essas imagens que vc coloca de ilustração são mto boas.

    ResponderExcluir
  14. Amei o final sem final ... rs(Talvez por isso, quem sabe ?! rs) Qual nada ... texto mais do que real, na vida de qq um ! Na minha entào, encaixou como uma luva : buscar, brincar, pensar ter, não ter, insistir, repetir, voltar, chorar, fingir alegria, tesão como paleativo, tristeza da partida, alegria farjuta na volta - por sabermos passageira - querer reter sem poder, e por aí vai ...
    Amo como vc escreve e vc já sabe disto !
    Música e imagem dezzz !!
    Fiquei feliz em ter gostado do final !! ( os meus finais são infinitamente piores ... e falo na vida real !! rs Tendeu agora ?? )
    Beijos lambidos !
    Helô

    ResponderExcluir
  15. meu favorito mesmo!
    (você está me fazendo gostar de radiohead --'')

    ResponderExcluir
  16. Li ao som da música... seu texto me fez pensar, parar, ficar inerte à tela antes de tomar a iniciativa de comentar. Me vi em certos momentos, expressou certos desejos meus que não sabia expressar... você brinca com o texto com supremacia!
    Adoro.
    Parabéns.
    bjs
    ;**

    ResponderExcluir
  17. Hey Lucas!

    Meu irmão, obrigado pela visita em meu blog e pela sua opinião.

    Olha...Parabéns ao seu blog hein? Bacana mesmo...

    Abração!

    Jean
    Cosmonautabr

    ResponderExcluir
  18. Me senti assistindo Bergman, me vi lendo Caeiro. Uma claustrofobia necessária para dolorir os pulmões, para que se abram e respirem, e se encham de lucidez, de sobrevivência, de instinto, de grito e, de braços abertos, subjugemos tudo ao nada! Gostei demais!

    ResponderExcluir
  19. Lucas, que coisa mais linda! Já brinquei muito de ficar triste e depois ser feliz de verdade! Mas quando o negócio vai ficando sério, a gente acaba se perdendo de si mesmo sem se dar conta, né?

    Vai ficar tudo bem, sim.

    E seu texto está PERFEITO, como sempre!

    Estou com um novo blog, tá?
    http://tf-pensamentos-soltos.blogspot.com/

    Beijooooooooooooo!

    ResponderExcluir
  20. Texto lindo, sabe-se que veio do fundo do teu coração, coisas que a alma grita. Pois tu és uma criança bem orientada dos teus sentimentos, incondicionalmente falando. Um café.

    ResponderExcluir
  21. Para cada texto,fico sem palavras de uma forma diferente.Acredite,isso é possível !!!
    Gostei muito,muito e muito !!!

    ResponderExcluir
  22. bem legal esse

    quando puder da uma conferida nas músicas no www.myspace.com/eduardopolitzer algumas dos posts são letras que estão cantadas lá

    ResponderExcluir
  23. Lucas.. quando tu disse que ainda faltava algumas coisas não imaginei que fosse ficar melhor do que ja tava!
    e ameiii amei mesmo

    " E a gente já nem sabe se é feliz ou triste de fato. A gente nunca sabe, nunca soube."
    Parabens ja disse que tu tem talento!

    obs.: tu sabe que sempre estarei aqui!
    beijosss

    ResponderExcluir
  24. Lucas, não sei exatamente o que te dizer à respeito desta crônica, simplesmente tenho que te dizer que é covardia, nos incentivar a ler enquanto se ouve videotape, incondicional, é na verdade uma desculpa, e não um ato, devia ser reciproco, porém, é moralmente condenavel. Sério belo, lindo, amavel, banal, encantador e belissímo texto.

    ResponderExcluir
  25. Um conto de uma proposta erótica direta, com alguns pontos nebulosos. Fiquei na dúvida entre os personagens. Em um momento, parecem homem e mulher, noutro, homem e homem. De toda a maneira, esse brincar secreto criou um aspecto de mistério que intrigou. Pode ser uma interpretação errônea, mas o bacano do escrito é justamente esse: ter variáveis interpretações.
    Bacana!

    ResponderExcluir
  26. Não quero complicar o que senti quando li esse texto formando frases longas e sem sentido (mas formando): Simplesmente adorei!

    ResponderExcluir
  27. Por vezes brincamos fingindo que somos o que realmente não somos, mas que no fundo gostavamos de exprimentar ser, a todos nós acontece isso.
    Amei o texto, tao bem escrito como sempre.
    Beijo grande:]

    ResponderExcluir
  28. não sou feliz, mas juro que tento ser!

    ResponderExcluir