quinta-feira, 14 de maio de 2009

A Imóvel Ausência


Ela

...sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados...

Ela sabia falar bem, embora fosse criança, e tinha bons gostos pras coisas, praticamente pra tudo. A gente costumava passar na loja de roupas, e eu só sentava e esperava enquanto ela ia pegando, com suas mãos pequenas e delicadas, algumas camisas, calças, talvez uma gravata, meias, e eu a deixava escolher à vontade; Nunca me arrependi. Seus gostos eram realmente bons, e eu sempre a deixei à vontade.
Quando chegava em casa, no finalzinho da tarde, depois de me contar como havia sido seu dia e de como tinha se relacionado com os pequenos amigos de classe e com as professoras, sentava no chão da sala, com aqueles montes de giz-de-cera espalhados pelo chão, e também alguns papéis amassados. Os desenhos eram praticamente os mesmos: Três bonecos coloridos de mãos dadas.
Em cima do boneco menor de todos – que ficava no meio dos outros dois – ela escrevia eu; no da direita com cabelos grandes escrevia mãe; e finalmente, no da esquerda, que carregava na mão de palito uma mala, ela escrevia pai. Atrás, em cima dos três bonecos, dava pra ver um círculo todo pintado de amarelo, com alguns tracinhos em volta retratando os raios do sol. Tinha também uma casa, daquelas simples – quadrada com telhado triangular -, e eu nunca entendia qual era o motivo das crianças terem essa mania de desenhos coloridos retratando a família. Ainda mais no caso dela, que não tinha mãe.

***
A mãe, meu velho amor:

Ela morreu no parto, meu velho amor. Como lembrança eu só tinha a minha pequena, que ela havia deixado pra mim, e era toda minha agora. A conheci quando eu tinha treze anos, e até o parto de final triste nunca havíamos nos separado.
Era bonita: Cabelos negros e lisos, olhos castanhos, dedos de pontas finas e pele branca. Seguimos à risca a doutrina que os padres costumam dizer nas cerimônias de casamento, até que a morte nos separe. E separou.

***

Às vezes ela brincava com meus cabelos enquanto eu assistia TV, minha pequena, e além disso, antes de dormir, a gente inventava histórias sem fim, pra poder continuar no outro dia como se fosse uma vida paralela ou ainda mais que isso: um reflexo de nossas próprias vidas. Uma vez ela me disse que nunca ia me abandonar, e que mesmo quando eu ficasse velho e fraco, nunca deixaria de brincar com meus cabelos.

Eu

...num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado...

Minha cama era grande, e fato é que nela só dormia uma pessoa, e essa pessoa era eu mesmo, embora nem sempre tenha sido assim.
Era evidente que um dia a casa havia sido pequena, sim. Aqueles dois quartos, a sala grande e a cozinha toda decorada com azulejos de flores azuis - tudo escolhido por ela. Aquilo havia sido pequeno um dia, pequeno pra ela e pra mim. Mas agora eu estava sozinho, e a casa tinha ficado terrivelmente grande.
Também já fazia um tempo que eu tinha parado de programar o despertador. Antes eu me importava com o tempo, mas agora tanto fazia acordar quatro horas da tarde quanto duas da madrugada, eu realmente não me importava. Joguei no lixo o despertador; percebi que ele não tinha mais utilidade. Tomando isso como rumo, tirei também o relógio amarelo que ficava pendurado na parede da cozinha, o vermelho que ficava na sala, e bloqueei os canais de TV que falavam as horas. Foram todos pro lixo, assim como deveria ser.
O que eu quero dizer é que num certo dia acordei e, logo em seguida, percebi uma ausência toda que ficava imóvel bem do meu lado. Era a sua ausência. Nada mais me importava depois desse dia. Desde que ela tinha se mudado eu não conseguia me concentrar, muito menos limpar a casa e escolher roupas. Não comprava roupas há mais de três anos, não por falta de dinheiro, e sim pela sua ausência.
Tentei novos amores, mas eu já estava velho, e é difícil arrumar amor quando a gente fica velho. Não consigo entender por que é que o mundo é tão artificial, quase de plástico, todos vivendo na aparência, e só. Mas não me importava, queria mesmo era a minha pequena de volta, e também meu velho amor. Mas era impossível. A minha pequena tinha crescido, e o velho amor a vida tirou de mim.
Fumava mil cigarros por dia, e não havia álcool que dava conta de minha tristeza, desespero e solidão. Ela havia se mudado. Tomaram-na de mim.

Ele


...O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura...

Chegou sem avisar. Entrou pela porta da frente, ele e ela de mãos dadas, com um sorriso inconfundível no rosto. Me cumprimentou, sentou no sofá e ficou em silêncio. Sentei na poltrona e fiquei em silêncio também, olhando os dois e me preparando psicologicamente pra uma coisa que eu não sabia o quê, na verdade sabia, mas não queria saber.

O clima era intenso e minhas pernas se cruzavam e descruzavam de um lado para o outro e eu pensava em colocar um disco de música e desisti da idéia e depois pensei em servi-lo um café mas ele não merecia um café porque ele estava tomando minha filha de mim e eu não podia fazer nada e queria o matar por isso. Ele me olhava esperando alguma coisa de mim e eu não tinha absolutamente nada pra dizer e minha vontade era de insultá-lo e expulsá-lo da minha casa e prender minha menina de dezenove anos no quarto amarrada pra ela nunca poder fugir de mim. Aquele seu jeito de garoto inoscente me irritava e eu sabia que hora ou outra ele colocaria o sexo dele no sexo dela e trocariam fluídos e amores e eu ia ficar pra trás nessa história toda. Cuidei e tratei da minha pequena e a vi crescer, alimentei, moldei feito uma flor ou um quadro que eu achava a coisa mais linda do mundo, mas agora ela não estava mais em minhas mãos e sim nas mãos de um outro homem que não entendia nada de amor e assim como eu fui ele era também instintivamente dependente do ato sexual e da troca de fluídos intensos. E era com a minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

- Me fale um pouco sobre você - falei finalmente, com uma voz calma, tentando esconder a raiva e o desespero que estavam gritando furiosamente dentro de mim.

Era um rapaz novo, por volta dos dezenove ou vinte anos. Tinha um emprego razoável e parecia-me responsável. Mas isso não bastava, eu não queria nem um milionário tirando minha filha de mim. Ficamos trocando informações desnecessárias até que o que eu mais temia aconteceu. Apertaram as mãos ainda mais fortemente, e com aquele olhar de paixão e falso amor ele me disse:

- Vim até aqui pra pedir a mão de sua filha em casamento.

O gelado me subiu dos pés pra cabeça e eu vi a sala ficando em forma de círculo e pensei que fosse loucura mas era só tontura e depois me recuperei e senti minha vista ficando branca e não sentia mais as pontas dos dedos. A respiração estava eufórica e eu sentia o ar passar por minha garganta feito pontas de faca rasgando do início ao fim tudo que eu tinha por dentro. Lembrei da minha pequena e de como ela me disse um dia que nunca deixaria de brincar com meus cabelos mesmo quando eu ficasse velho, e agora eu já estava velho e quase não tinha mais cabelos. A minha pequena desenhava a família colorida no papel e eu lembrava cor por cor e agora havia surgido mais um boneco invasor no papel amassado. Ninguém o convidou. A pequena cresceu e agora estava quase uma mulher e eu não podia fazer mais nada e ela não estava mais tão carinhosa assim e não escolhia mais minhas roupas nem brincava mais com meus cabelos, mas ainda era minha pequena. Ninguém tinha o direito de tirá-la de mim. Ninguém. Minha menina. Só minha. Só.

O Fim

Eles foram embora pela porta da frente e nunca mais os vi. Pra mim só sobrou essa casa terrivelmente grande e essa ausência que fica imóvel bem do meu lado. A ausência é da minha pequena. Minha menina. Só minha. Só.

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30 comentários:

  1. Mãe de Deus, Lucas !! Como vc escreve bem rapá ! rs Adentro pelo cenário e vivo o que estou lendo numa boa ... Legal este seu dom, né ??
    Deixarei uma perguntinha no ar, já que os seus finais sempre me frustram um pouco: Por que a danada da menininha nunca mais voltou pra ver o pai ?? Argh .....
    Beijos com sabor de volta !! rs
    Helô

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  2. Ninguém permanece o mesmo, nem nós mesmos, é claro !! O nome disso é evolução, seja ela pro bem ou pro mal. Cada um determina o seu caminho ... Ela deixou de ser meninha pro pai e aos olhos do mundo, ainda que dentro dela resida uma eterna menininha medrosa, carente; mas por vezes tb confiante, alegre e otimista !! É a nossa criança interior,sem dúvida alguma, e ela nos impulsiona vida afora sim ... O pai não só perdeu a sua menininha como perdeu-se de si mesmo,com a morte da amada !! Pela lei da vida, os filhos tomam seus caminhos, mas nos retornam de outras maneiras ... Nos dão netos, nos aconselham, ainda nos amam, contam com nossa ajuda na criação de seus filhos; e talvez ainda venham a cuidar de nós um dia, na nossa velhice, quem sabe ??
    Enfim ... continuo achando que o final poderia ter me deixado mais felizinha sim !! rs
    Beijos de uma menininha meio coroa !! rs

    Helô

    P.s Já leu alguma coisa escrita por mim lá no Blog ?? Estou longe do seu dom com as palavras, mas dou meus pitacos !! rs No tópico Helô"cubrações tem um texto que falo sobre este assunto ... Adoraria que o lesse, e trocasse opiniões comigo !! Aceitas o desafio ?? Têm outros tb interessantes,quem sabe me dê este prazer ?? rs
    + bjus

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  3. OK, Lucas !! Claro que percebo ser a sua forma de escrever !!rs Eu é que fico a te provocar, pois creio que as polêmicas saudáveis, só nos fazem crescer !! Gosto do que escreves, independente dos finais ... mas eu iria ficar mais alegrinha com uma pitadinha de esperança e otimismo !! rs
    ( mas só uma pitadinha ... rs)

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  4. Nossa cara, a cada post você se supera em criatividade e idiossincrasia. Um deleite em frases de impacto que criam imagens surreais, por vezes. Espero que um dia consiga um compêndio publicado dessas pequenas obras.

    Abraço.

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  5. Que triste realidade!


    Muito bom o seu texto!
    Cada dia melhor...

    Parabéns!

    beijos.

    [só fiquei me perguntando:
    Por que eles nunca mais voltaram?
    Espero que voltem...rs]

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  6. Oi Lucas!!!
    Lindo, muito lindo e comovente..
    Parabéns pelos textos!!

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  7. Você é demais, garoto. Maravilha de texto..esse e todos os outros. Fantástico.
    Nunca vou deixar de passar por aqui.

    * Sobe "Divã", eu detestei. Muito fraquinho.

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  8. Muito linda viu??! Parabéns pela história e por sua "menina".

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  9. É bem interessante aqui.
    Li bastante, pensei em muitas coisas, me lembrei do C. F. Abreu várias vezes, me senti comovida, deprimida, emocionada... enfim, seus textos são viscerais (deve ser essa a melhor definição, não sei...)
    Gostei bastante.
    Até.

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  10. Lucas linda narrativa, vc consegue prender o leitor em cada palavra, cada momento, eu sinto até o cheiro do local, acredita?

    Parabens, perfeito!


    Bjos de luz!

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  11. Que texto lindooooooo, adorei viu?

    Eu sou meio Marina Colossanti, escrevo mais narrativas curtas , mas adoro textos assim!

    Bjos em teu coração!

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  12. Que história triste. Meu lado romantico, sempre fica um pouco 'abalado' quando leio algo assim. Não entendo pq amores tão verdadeiros, simples e grandes... acabam assim. Talvez seja apenas para provar, que o amor está além da presença carnal e que não acabam.

    Mesmo triste, é um texto muito bem escrito!
    Beijão e uma ótima semana pra ti.

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  13. Profundo e triste.
    Fico pensando porque em mim houve alegria quando percebi em meus filhos a capacidade de vôos solo?
    Serei eu louca?

    Desejo-lhe loucuras

    meu carinho

    Denise

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  14. Nossa! Tu escreve muitíssimo bem, faz surgir sentimentos intensos ao assimilar as letras de teus textos... gosto muito!

    "Minha menina. Só minha. Só." (...) Talvez pela perda precoce da esposa e por ter se dedicado além dos limites à filha, esse homem desenvolveu uma relação linda, mas possessiva com sua "pequena".
    Lembrei do "ninho vazio" que falamos na psicologia... a 'crise' que os pais enfrentam ao se deparar com os filhos crescidos saindo de casa... Para ele, o tempo deixou de importar naquele momento. Talvez tenha deixado de importar bem antes, já que para ele, ela era sempre "menina".


    Muito bom mesmo, parabéns!
    Beijos pra tu! ^^

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  15. Lucas,

    vi que muitos considereram esse conto triste ou pouco romântico, não vou me ater a esse tipo de consideração. vejo teu olhar denso entremeando sentimentos que se alternam no tempo. o vácuo dos afetos produz uma literatura em 'carne viva", sem unguento que aplaque o vazio da solidão. Você vai plantando no leitor esse lento esvaziamento, a sensaçào de falta que resvala no cotidiano "dele" a cada momento. Muito belo! Feito o movimento da vida! bjs

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  16. as pessoas já deixam comentários demais, não sei porque insisto em deixar o meu -.-'

    ótimo texto como sempre! Não sei, me lembrou meu pai, e o amor desde os treze anos me lembrou outra história de uns amigos meus de colégio hehe

    beijoo

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  17. Rapá, eu fiquei triste, agora...
    Isso me lembra os meus afilhados... crescendo e não me querendo mais tão por perto... buáááááá...

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  18. É cara, o abandono faz parte das nossas vidas. As pessoas que amamos semprem partem, cedo ou tarde.

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  19. Lucas, elogios vc já recebeu de sobra...rsrsrs

    Vc é um escritor!
    Quanto ao seu comentário no meu blog... Ah, meu querido... Não procure sentido nas coisas... Não há sentido em nada...

    Viva e ame... Ame a viva...



    Beijos e carinhos mil!

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  20. nossa que liindo tdo isso *-*
    pq naum escreves um livro?(:

    bejoos

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  21. Os tempos mudam, e cada vez mais, vemos as pessoas se apaixonar por pessoas novas, tanto homens como mulheres, porque as pessoas deixam-se levar muito pelas aparências. E depois pessoas como esse homem, fica na solidão, pela perda da sua mulher e pode dizer-se que também pela perda da sua filha.
    Cada dia que passa escreves melhor:]
    Beijo

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  22. Seus textos são excelentes.
    Parabéns.
    Abraços.

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  23. Mudanças sempre existiram..
    As pessoas a nossa volta mudam e nós acabamos meio que por radiação mudando também...
    Pode ser quase nada ou quase tudo.
    Nem toda mudança é positiva

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  24. Viajei junto aos desenhos daquela menina. Lembrei – me dos momentos em que me pego refletindo no olhar, no desenho, no vazio de uma criança na escola onde trabalho. Às vezes quando chego à escola chateado, triste... Sento no chão, e ali parece que tudo passa por um minuto quando olho pra uma criança, ou quando ela correr pra onde estou, e pergunta, oh Tio o Senhor não vai brincar com a gente, ou pegar o seu único lanchinho e correr onde o Tio e diz, Tio pega um pouquinho. Ah! Às vezes eles não entendem os seus próprios rabiscos ou desenhos, mais nós entendemos, parece que é uma mensagem, um despertar.

    No desenho de uma criança pode estar o sonho de um homem.


    Belíssimo o seu conto caro Lucas.

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  25. Oi, Lucas, voltei para reler...

    É que textos assim a gente lê uma vez e parece que fica faltando algo...
    É sempre bom voltar e reler novamnete...

    Mas o encamento é maior ainda!


    Beijos avassaladores para vc!

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  26. Eu encontrei tempo para ler um conto escrito por você, Lucas. E sei como é difícil criar uma história com tantas vozes e ainda exibir os detalhes. Mas também sei que quando terminamos de escrever, temos uma sensação quase santa. Você tem muito talento e fico feliz por ter encontrado seu blog.

    Beijos.

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