terça-feira, 28 de abril de 2009

O Espantalho no Milharal em Chamas


Para ler ao som de:
Pink Floyd - Wish You Were Here


Estava imaginando como seria ter que aturar mais um dia, de muitos outros por quais eu ainda teria que passar. Talvez fosse por acaso que eu estivesse justo ali, bem naquela cama, naquela casa, naquele bairro, e assim sucessivamente. Mas na verdade estava ali só porque eu existia, e teoricamente, quem existe tem que estar em algum lugar. No meu caso era ali, sem surpresas e sem suspense.
Costumava levantar e tropeçar todo dia na porcaria do tapete que ficava bem do lado da minha cama. Mas sabe, gostava dele, e não queria tirá-lo dali. Naquele dia não foi diferente, tropecei no tapete, mas nem me importei, já estava acostumado.
Além disso, eu também tinha um cachorro, e nele eu depositava todas as minhas mágoas. Não que eu o insultasse, nem agredisse, nem nada. É que quando eu estava um pouco blues, ia brincar com ele. Ele se chamava Zero, não sei bem o motivo de eu tê-lo nomeado assim. Mas eu gosto da sonoridade: Z-e-r-o. Me agrada dizer essa palavra. Ele sempre mijava pela casa toda, e destruiu o meu sofá, mas não comprei outro. Ningúem vinha em casa, sendo assim não havia ninguém pra reparar no sofá. Como eu também não me importava, não comprei outro. O Zero me acordava todo dia com lambidas na cara, e naquele dia também me acordou assim.
Além do Zero, eu tinha uma TV, que ficava num suporte, pregado bem no vértice do teto com a parede. Eu tentava assistir, mas sempre desistia. Tinha exatamente setenta e quatro canais, e eram setenta e quatro porcarias passando todo dia naquela tela de quatorze polegadas. Pelo menos eu poderia escolher entre eles, sabe, seria bem pior se eu não pudesse escolher. Era uma bela mordomia que Deus tinha me dado: "Filho meu! Você tem o direito de escolher qual das setenta e quatro porcarias você vai assistir, não vou te obrigar a nada, use seu livre-arbítrio à vontade!". Bem que Ele podia me dar uma TV colorida, ou um carro, ou qualquer coisa assim. Mas não, só recebo essa droga de livre-arbítrio que não me serve pra absolutamente nada.
No café da manhã não costumava ter muito segredo, e naquele dia não foi diferente. Pão com manteiga na chapa e leite. Como sobremesa chupei um limão. Não sei por quê, dentre tantas frutas, fui escolher justo o limão como sobremesa de todos os dias. Acho que é porque ele é diferente. Sabe, ele causa todas essas caras feias, e problemas estomacais em todas as pessoas, e mesmo assim ninguém fica com raiva. Continuam fazendo limonada, ou qualquer coisa que tenha limão.
Depois do café, eu tinha um horrível ritual de mandar trezentos quilos de nicotina pra minha cabeça. Conseguia fumar um maço de cigarro num intervalo de uma hora. Mas é que na maioria das vezes fumava de dois em dois, enquanto eu assistia qualquer uma das setenta e quatro porcarias que passavam na TV. Todo mundo falava que isso iria me matar, o cigarro, mas eu não dava a mínima. Já estava morto, mesmo. Ninguém conhece uma pessoa que não aparece, que nunca viu. É impossível conhecer uma coisa que não aparece. Quem nunca aparece não existe, e quem não existe, por lógica, está morto. E eu era assim, existia, porém só existia pra mim, naquele quadrado com portas e janelas que as pessoas costumavam chamar de "lar", ou "casa", ou "doce lar", ou qualquer droga de nome que servem pra nomear uma mesma coisa.
Faziam já cinco semanas que eu não limpava nada. Tinha mijo pela casa toda (não meu, do Zero). O chão, de branco, já estava amarelo. As paredes tinham marcas de suor e dedos por toda parte, cheguei a encontrar até rastro de sangue, que foi de quando o bandido invadiu e eu enchi a cara dele de martelada (Ele não morreu nem nada, mas imagino que depois daquele dia ele lembrava de mim sempre quando se olhava no espelho). Tinha também aquele lençol gozado, que estava no canto da cozinha, que foi de quando eu levei Cristina pra lá, aquela prostituta barata. Já fazia umas três semanas, e nem estava mais cheirando, nem nada. Percebi que o tempo cura praticamente tudo, até os odores. Uma coisa fede até um certo ponto, e depois, de tão decomposta, não tem mais o que cheirar, e o fedor passa, assim, repentinamente. Pode demorar meses, mas uma hora o fedor passa. Uma hora tudo passa, essa é que a é a pura verdade.
Lembro quando levei Cristina pra lá, a primeira coisa que ouvi foi "Por acaso alguém morreu aqui e você esqueceu de tirar o cadáver?". Quase que a insultei, mas ela era bonita demais pra ser insultada. Não entendo o motivo dela ter virado prostituta, já que era tão bonita, e poderia ser modelo ou qualquer coisa assim. Gostaria de ter me encontrado com ela mais vezes, mas sabe, é contra as leis da natureza se apaixonar por uma prostituta. Não por ser prostituta, e sim por não poder reclamar de ter que compartilhar com milhões de outros gatos pingados a única coisa que pode ser inteiramente minha em uma mulher.
Como estava dizendo, pra passar o tempo, à tarde, costumava colocar na minha vitrola velha alguns de meus discos de vinil. Entre eles tinha um do Pink Floyd, o The Wall, e era esse o que eu mais gostava. Esse disco é uma ópera-rock, e conta uma história onde o personagem principal é o Pink, e sabe, adorava o Pink. Ele é o tipo de cara que não serve pra absolutamente nada, igualzinho a mim. A diferença é que ele é um rock star, e tem motivos pra se revoltar. E eu, bem, não era nada, e era assim sem motivo nenhum. Simplesmente era. Eu tinha sim a capacidade de ser alguma coisa, mas não o fazia. Sabia falar, amar, abraçar, e até voar. Podia fazer todas as coisas inúteis do mundo, mas a questão é que não tinha pra onde voar, nem a quem amar, nem nada. Então ficava ali, apodrecendo feito um espantalho num milharal em chamas. Sem poder fugir, morrendo queimado, parado de braços abertos feito um idiota (Odeio os espantalhos). Afundava meu mundo num copo de café, misturado com meu horrível ritual de nicotina e tabaco. Limitava minha vida a apenas isso.
Acontece que um dia eu fiquei de saco cheio, mais do que nos outros dias, e cansei de olhar pra droga daquela TV. Cansei do meu cachorro, cansei de ter que desviar dos mijos no chão, de ficar sozinho ouvindo Pink Floyd, de comer prostitutas, de olhar pras manchas de sangue na parede e pro meu corpo imundo sem banho à tanto tempo. O que deu foi que saí daquele quadrado com portas e janelas, e não havia nada lá fora. Todas as outras pessoas casas carros cachorros postes ruas calçadas árvores hidrantes e etc haviam simplesmente sumido. Olhei pra trás e vi minha casa no meio do branco, no meio do silêncio absoluto de uma vida como a minha. O Zero estava na porta, balançando o rabinho e latindo pra que eu voltasse, afinal, não havia nada pra mim lá fora. Meu lugar era ali dentro, isolado, vivendo minha vida sozinho. Eu havia me desacostumado com o mundo cruel, com as pessoas cruéis, com o barulho dos carros, com essa idiotice toda de emprego, escola, faculdade, e todos os complementos idiotas que formam uma sociedade mais idiota ainda.
Voltei pra casa e fiquei assim, feito um espantalho num milharal em chamas. O mundo não merecia minha atenção, e nem merecia nada, absolutamente nada de mim.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O Estranho Caso de Daniel Guliver


Os escritos abaixo são trechos do diário que pertenceu a Daniel Guliver. Foi encontrado em seu antigo apartamento, na cidade de São Paulo, por Isabela Birk, uma antiga namorada de Daniel. Isabela alegou que ele enlouqueceu sem motivos aparentes, num intervalo de três semanas.

[...]

11/06/1973

Hoje vi uma coisa estranha. É uma figura que não tem rosto, nem cabelo, nem nada. Só ficou me atormentando. Me fez gritar, ficar nervoso, e eu não pude fazer nada. Eu não sei quem, ou o que ele é. Só sei que apareceu pra mim, e foi o que me fez brigar com Isabela. Não consigo entender. Nunca brigamos, eu e Isabela, mas hoje isso tomou conta de mim, e não consegui me controlar.
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14/06/1973

Apareceu de novo. Mas dessa vez ficou só por perto, como se estivesse analisando alguma coisa. Estava com um sobretudo preto, que cobria seu corpo magro, quase esquelético. Estranho de tudo é não ter rosto, isso me assusta.
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18/06/1973

Fui demitido do trabalho, mas não tive culpa. Fiquei inconsciente por alguns minutos, e quando voltei à consciência, me vi segurando uma faca, com todos olhando desesperados pra mim. Larguei a faca imediatamente, e pedi desculpas várias e várias vezes. Mas o chefe me disse que não havia outra opção se não a de me demitir. E assim o fez. Não o culpo.
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24/06/1973

Isabela está mais ausente do que nunca. Me disse que eu estava fora de mim, e que preciso de um tempo sozinho. Como é que só eu estou o vendo? Engraçado é que ninguém acredita, ninguém.

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27/06/1973

Hoje foi desgastante. Me perdi de novo. Foi a mesma coisa, perdi a consciência, e quando voltei, me vi naquela cena estranha, onde eu estava segurando uma faca e todas as pessoas do restaurante estavam olhando desesperadas pra mim. Larguei a faca imediatamente e fiquei pedindo desculpas igual um idiota.
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07/07/1973

Como eu já esperava, hoje ela me largou, a Isabela. Disse que eu precisava me tratar. Mas tudo bem, já fazia um tempo que a gente não parava de brigar, e além do mais, não tem mais como conviver assim. Acho que vou embora mesmo. Vai ser simples, rápido e frágil, sem surpresas e sem avisos.

[...]

Daniel Guliver foi encontrado morto em seu apartamento, na noite de 10 de Julho de 1973. Junto dele estava um diário e um livro de capa vermelha, totalmente em branco, que misteriosamente sumiu dos arquivos policiais depois de duas semanas do ocorrido.
Isabela o encontrou morto quando voltou ao apartamento para se desculpar de uma briga, que segundo ela, havia sido a causa do término do antigo namoro. Ela disse que finalmente o havia entendido, mas chegou muito tarde. Ele já estava morto.
Hoje, três semanas após a morte de Daniel, Isabela está internada em uma clínica de tratamento psicológico na cidade de São Paulo, devido á tendências extremas à tentativas de homicídio e agressões físicas. Além disso, ela alega ver constantemente uma figura sem rosto, que a atormenta e controla o seu corpo sem que ela possa fazer nada. Seu caso foi dado como suspeita de Esquizofrenia e/ou Psicose. Está em período de observação.

Outro fato importante: O mesmo livro de capa vermelha foi encontrado junto do cadáver de uma criança, no interior de Minas Gerais, no dia 28 de Julho de 1973. A única diferença é que no livro já haviam alguns escritos, e na capa continha o título "O Estranho Caso de Daniel Guliver". O autor era alguém com pseudônimo de "Morte".

Segue abaixo trechos do livro:

...

[...] eu teria que chamar a atenção de alguma forma. Daniel não era um rapaz comum, não tinha religião nem nada, e por isso não foi fácil convencê-lo através de sinais ou mensagens indiretas, como geralmente faço para avisar que estou chegando. Com ele eu tive que aparecer bem em sua frente, em forma física, pra ele ver que eu existo de verdade. E ainda assim ele não entendia por completo, aliás, acho que ele morreu sem saber o que eu queria. E isso era, de fato, avisar que estava na hora de bater as botas. De qualquer forma, após convencê-lo de tudo, esperei que ele mesmo se entregasse, através do suicídio, e assim o fez. Ele está aqui do meu lado agora, o Daniel, até tomamos uns drinques, fumamos uns cigarros e tudo mais. Expliquei a situação e ele até que não levou a mal, pois já estava de saco cheio de ter que viver no meio de um bocado de regras lá na Terra. Aqui não tem muita regra não, pois é a "última estação", daqui ninguém mais vai pra lugar nenhum. Meu próximo objetivo é resgatar sua namorada, Isabela, pois ele está sentindo muita saudade, e fica falando o tempo todo que tinha coisas pra resolver com ela, e blá blá blá. Isso me irrita. Vou tentar seguir a mesma estratégia com a garota, mas o problema é que todo mundo está em cima dela. Se der qualquer sinal de loucura, vão acabar a colocando em um hospício ou qualquer coisa assim, e aí a coisa complica. Com um bando de doutores a observando, não tem como ela se entregar, e também é contra as leis do universo tirar a vida de uma pessoa assim, sem mais nem menos. Consigo tirar só quando a pessoa está com alguma doença, ou já muito idoso. Mas de qualquer forma vou tentar, uma hora ou outra ela arranja um jeito de se entregar. [...]

[...] logo depois que Daniel se entregou, vim pra cá, e percebi que fiz a bela burrada de esquecer esse livro bem no lugar onde ele morreu. Mas tudo bem, ainda estava em branco, e ninguém desconfiou de nada. Depois de duas semanas voltei lá pra pegar, nos arquivos policiais, só pra dar o tempo de esquecerem um pouco a morte de Daniel. Agora, enfim, estou escrevendo uma história interessante. Já estava cansado de ter que ficar aturando esses casos idiotas de gente com doenças incuráveis, ou velhice, e etc. [...]

...

Informações extras:

O livro foi queimado e jogado no mar, por orientação da Igreja Católica.

Ainda não se sabe o motivo do livro ter sido encontrado no interior de Minas Gerais, mas provavelmente alguém o esqueceu ali.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A História de um Sonhador Incompleto - Do Outro Lado

O dia estava um pouco cinza, mas eu gosto assim. Sabe, os dias cinzas são bons pra pensar, e além de tudo, quando faz sol, o calor e o barulho dos ventiladores me incomodam. Eu estava voltando do trabalho, e pra quem ainda não sabe, trabalho na droga de uma loja de aspirador de pó. Lá vende outras coisas também, mas o forte é aspirador de pó. Como eu estava dizendo, estava andando lentamente, voltando pra casa, quando ouvi uns gritos estranhos vindo do fim da rua. Fui até lá, só de farra, curiosidade mesmo. Era um mendigo, ou qualquer coisa assim. Ele dizia uma frase só, e dizia cem mil vezes: "Pra onde vão os ratos? Pra onde vão os ratos? Pra onde vão os ratos?..." É uma coisa curiosa, mas pra falar a verdade não dou a mínima pra isso. Não tenho o mínimo de interesse em saber pra onde os ratos vão ou deixam de ir, portanto, continuei andando.
É engraçado como todas as pessoas na rua têm a mesma feição, aquela de indiferença, como se estivessem de saco cheio de alguma coisa que nem elas sabem. Lembro que uma velha tinha passado bem do meu lado, e era bem velha, com a cara toda enrugada, cabelos todos brancos, e tudo mais. O fato é que ela não se importava com nada. Estava com um gato por entre os braços, segurando como se fosse um bebê. Fiquei pensando naquela velha, que hoje já deve ter batido as botas. Já devia ter passado por muita coisa na vida, visto de tudo, tudo mesmo. E ela estava lá, andando na rua com a droga de um gato, como se nada estivesse acontecendo. Sabe, deve ser ruim ser velho, na beira dos oitenta anos, quando a gente sabe que a qualquer momento a gente pode morrer. Fico imaginando qual será a sensação quando chegar minha vez de bater as botas. A solução é comprar um gato e sair por aí, andar pelas ruas sem motivo nenhum, deve resolver alguma coisa. De qualquer forma, depois de um tempo deixei a velha pra lá, pois não valia a pena ficar perdendo meu tempo pensando em uma velha.
Fui sentar num banco de praça, daqueles meio brancos, marrons em algumas partes, que a gente encontra sempre no centro da cidade. Os pombos sempre ficam por ali, procurando migalhas e restos de qualquer porcaria que se pode mastigar e engolir. Não entendo qual é a função deles, os pombos. Imagino que eles fazem parte da cadeia alimentar, afinal, são animais. Mas o fato é, se um bicho maior come o pombo, e o pombo come as migalhas de pão, as migalhas de pão deveriam fazer parte da cadeia alimentar também, mesmo não sendo animais. Na verdade isso não faz a menor diferença, ninguém realmente se importa com isso, e muito menos eu.
Como estava dizendo, sentei num banco de praça. Na verdade era pra me encontrar com minha menina (Ela saiu do trabalho no mesmo horário que eu, aquele dia), mas aproveitei o momento pra pensar, o que foi um desastre. Ninguém deve parar pra pensar. Ninguém. Nunca. Imagine só como o mundo ficaria se todo mundo parasse pra pensar, de repente, na mesma hora. Talvez todos parassem de trabalhar, ou se não iriam enxergar o quão idiota a gente é por perder mais de metade de nossa vida fazendo coisas inúteis, como por exemplo, estudar, trabalhar, se formar, e etc, pra depois de tudo morrer feito um pedaço de carne ambulante. Até imagino milhões de pessoas saindo todos nus pelas ruas, gritando "Liberdade! Enfim, liberdade! Viva!". Todos se pegando, gritando, todos felizes, libertos... Mas não! Vivemos aqui, e temos que trabalhar, trabalhar feito animais idiotas. Claro que trabalhar dá dinheiro, sim, mas seria melhor se o dinheiro viesse sozinho, sem esforço, enquanto eu estivesse deitado na porcaria do sofá da minha casa, assistindo qualquer programa idiota que passa na TV, ou amando minha menina, ou qualquer outra coisa. O que eu sei é que aprendi, na minha vida monótona, a evitar o máximo parar pra pensar, mas nos dias cinzas não consigo evitar, não mesmo.
Sabe, conheci minha menina quando eu era bem menor, antes de meu pai morrer, e foi lá no colégio de freira. Por incrível que pareça, ela era uma das freiras, mas era só por obrigação. Sua mãe era uma freira também, e pecou cruelmente por transar com o padre e engravidar dele. Claro que ela deixou de ser freira, e o padre deixou de ser padre, mas como sacrifício, resolveu tentar fazer de sua filha uma santa. Coitada. De freira mesmo sua filha só tinha a roupa. Desde quando entrei lá eu desconfiava que tinha alguma coisa estranha naquela menina. Até que um dia, no intervalo entre as aulas, a vi no refeitório, olhando pra mim sem parar e fazendo algum sinal que eu não conseguia entender. O que eu sei é que a segui, mesmo sabendo que perderia as próximas aulas, mas eu nem dei a mínima. Fui guiado, sem saber, até o lugarzinho onde eram guardados os materiais de limpeza. Era grande, o lugarzinho, pelo menos parecia grande naquela época. A gente ficava à vontade ali, sem ficar espremidos nem nada. O que eu sei é que não houve palavras, ela simplesmente tirou toda a roupa, a minha e a dela, e começou a me lamber. Claro que ela não fazia isso com outro, afinal, não gostava daqueles mauricinhos-filhinhos-de-papai do colégio. Depois daquele dia nos encontrávamos sempre, depois da aula, naquele mesmo lugarzinho, pois nem eu e nem ela podíamos sair de dentro da droga do colégio. O que deu foi que ela engravidou, e por pura sorte ou misericórdia de Deus, o feto caiu na água enquanto ela estava sentada na privada. Quando ela me contou, até então eu nem sabia que ela estava grávida, e nem ela sabia antes do ocorrido, mas aquilo era uma ótima desculpa pra gente poder sair daquele colégio. Então resolvemos contar tudo ao padre, e depois da gente ter apanhado feito cachorro podre, a gente foi expulso, finalmente, daquele lugar. Hoje a gente vive bem, até que bem. Não sou muito de falar, mas de vez em quando falo pra ela que a amo. Na verdade amo muito, muito mesmo, não vivo sem ela, só que evito ficar falando sempre pra não perder a intensidade das palavras. A gente sempre sai, vai pro lago, ou fica em casa mesmo, só conversando, ou se amando, e essas coisas assim, mas isso é outra história.
Voltando ao assunto, depois de eu ter esperado um pouco no banco da praça, ela chegou, minha menina. Voltamos caminhando, bem lentamente, e no caminho de casa enxerguei, bem de longe, um grupo de ratinhos entrando no bueiro. Era um bocado deles, talvez uns dez ou onze. Lembrei do mendigo, e fiquei até com vontade de voltar lá onde ele estava e falar: "Hey, os ratos vão pro bueiro! Eles vão pro bueiro! Não se preocupe não, viu!?", mas não, desisti da idéia. O que eu sei é que logo depois começou uma chuva fortíssima, e percebi que os ratos eram bem mais espertos que a gente. No fim deu que fomos pra casa, tomamos a maior chuva, pra poder repetir tudo de novo no outro dia. Mas um dia isso muda, e quando mudar, prometo contar.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

As Flores e a Solidão

É claro que se fosse pra escolher, não seria assim. Eu tinha amigos por lá, estava começando uma vida, uma carreira profissional, seja lá que droga isso for. O que eu quero dizer é que eu gostava de lá, e muito. Eu tinha até uma namorada. A gente quase não se via, mas acho que é bem melhor assim, e eu não sei o motivo. Ela sempre tinha as coisas dela, e eu as minhas, embora as minhas coisas fossem coisas idiotas como tentar escrever um livro, ou ficar sentado na grama tentando entender umas coisas impossíveis, como o fato de as formigas trabalharem tanto e nunca terem evoluído absolutamente nada. É bem curioso se for parar pra pensar. Mas como eu estava dizendo, também tinha muitos amigos por lá. Na verdade eram três, mas eu gostava muito deles, mesmo assim. Dois morreram num acidente de avião indo pra algum lugar que eu me esqueci, no ano passado. O outro morreu de overdose, quando a namorada o traiu. Mas isso são coisas passageiras, só muda o jeito de passar, que no caso deles foi a morte.
Por conta de alguns problemas, que eu não sei te dizer quais foram - A gente nunca sabe de nada -, eu tive que vim pra cá. É um lugar legalzinho, quando você leva em consideração que tem gente morando na África e morrendo de fome nesse exato momento. O segredo é nunca comparar com coisas melhores, estou aprendendo isso aos poucos. Quando eu acho que minha vida está ruim, olho pra um mendigo na rua, ou um cachorro de rua, e vejo que não tem tanta diferença, não. Então tento ir um pouco mais longe. Comparo com a vida que os escravos levavam a cem anos atrás, ou qualquer coisa assim. Até que conforta.
Sabe, no meio disso tudo, eu ainda consegui encontrar uma pessoa aqui, sim. Pra ser franco, não sei bem se é uma pessoa. O que eu sei é que ela senta todo dia no canto da minha cama, apenas pra ficar me olhando. Sempre coloca uma flor, toda manhã, no pote de manteiga vazio que fica em cima do meu criadomudo (Bom das flores é que elas não falam nada, não dão a entender, e muito menos desejam alguma coisa. São bonitas, simplesmente, por serem flores). A flor de ontem era amarela, e a de hoje, azul. Cada dia coloca uma de cor diferente, e eu não sei se é pra mudar a flor ou a cor, que por mim tanto faz, afinal, gosto das duas coisas.
Eu e ela, a gente não conversa, mas eu gosto de sua companhia mesmo assim. Com o tempo me acostumei com sua presença, e além do mais, ela me traz flores, de todas as cores, só pra me afastar dos problemas. Ela chega todo dia de manhã - é pontual - e vai embora só quando eu durmo. Sempre fica comigo em silêncio absoluto, analisando meu dia, como se estivesse estudando meu comportamento.
Eu nunca ouvi sua voz, nunca mesmo, mas o que eu acho é que ela simplesmente gosta de mim, embora nunca tivéssemos nos conhecido antes de eu ficar assim, sem ninguém. Ela apareceu sem motivo, e eu gostei, sempre gosto das coisas sem motivo, justamente por serem assim, sem ter que explicar. No final, é bem melhor não ter que explicar nada.
Nunca consigo apresentá-la a ninguém, e isso me deixa completamente confuso, porque ela não se despede quando foge de mim. Desaparece em questão de segundos, justamente quando alguém aparece por perto. Mas acho que ela não se despede porque sabe que vai voltar depois - e sempre volta. O que eu quero dizer, é que ela sempre fica do meu lado. Aconteça o que acontecer, ela sempre está aqui.
Um dia todo mundo brigou comigo, até as flores. Na verdade, até eu mesmo briguei comigo, mas ela não. Ficou bem aqui, quietinha, serena, só me olhando fixo a todo momento. Não houve conselhos, nem sermões, nem julgamento, nem nada. Ela ficou assim, calada, até eu mesmo perceber tudo e conseguir descobrir o caminho certo a se seguir. Talvez seja, assim, o melhor jeito de se ajudar, ou seja, deixando como está. O que eu sei é que a cada dia que passa, gosto mais e mais dela (da solidão), e também do jeito como ela me afasta, tão delicadamente, dos meus próprios problemas.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Casa de Cartas

A casa era de cartas, media em torno de um metro e ficava bem no meio do quarto de Ana. Era separada por andares. O primeiro andar era composto pelos Ás, o segundo era composto pelos Dois, o terceiro pelos Três e assim sucessivamente. Os Valetes compunham o penúltimo andar, e os Reis compunham o topo da casa, o último andar. Era ali, naquela pequena casa de cartas, onde Ana achou um refúgio da dolorosa realidade.
Ela passava horas e horas conversando com cada morador daquela pequena casa. Perguntava aos Valetes se eles não se entristeciam por saberem que nunca seriam Reis, já que os Reis atuais nunca morriam. Pois bem, eles explicavam que essa coisa toda de poder e status é coisa do nosso mundo, e que na casa de cartas não havia vantagem em ser Rei, nem em ser Valete, não havia diferença alguma entre ninguém. A única diferença é que os Reis eram os únicos que poderiam ser removidos da casa, simplesmente por serem do topo. Todos os outros, se fossem removidos, desmoronariam a casa inteira.
Conforme o tempo foi passando, ela se envolveu com cada morador quase absolutamente, e aprendeu a gostar de cada um deles pela simplicidade e pelo exemplo de vida harmoniosa que eles levavam. Mas acontece que, por ironia do destino, ela se apaixonou pelo Valete de Espadas. Claro que foi um amor inventado, assim como todos os outros amores de todas as outras pessoas do mundo, porém havia uma diferença, este era impossível. Não tinha como tirar o Valete dali, pois se fizesse, a casa inteira desmoronaria. Sendo assim, ela entristeceu. Não sabia se valia realmente a pena sacrificar seu velho refúgio assim, e simplesmente ignorar os outros cinqüenta e um moradores em troca de um amor que só ela entendia. Ana tinha apenas onze anos, e é bem difícil ter certeza de qualquer coisa nessa idade, e em qualquer outra idade, aliás.
Pois bem, depois de muito pensar, resolveu que tiraria sim o Valete de Espadas, e assim o fez. A casa foi desmoronando, carta por carta, alma por alma, lentamente. Ela enxergou todas as pessoas que ela tanto amava caindo, e não fez absolutamente nada. Seu amor era muito mais forte.
Depois de alguns segundos, olhou para todas aquelas cartas espalhadas no chão de seu quarto, e em suas mãos estava apenas o Valete, que com a morte de todos, se transformou em um Rei. Todas as paredes de seu quarto começaram a se transformar em cartas gigantes, cada uma de um jeito. Começaram também a se organizarem por andares. Ana era do antepenúltimo, junto com mais três Damas. Viu-se, sem querer, dentro de uma casa de cartas, que a qualquer momento desmoronaria. Trocou toda a segurança e o conforto do seu mundo, simplesmente por amor.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Ainda

Ainda dói um pouco, mas nada tão insuportável assim. Sabe, com o tempo a gente acostuma. Já passaram quase três anos, estou quase cem por cento. No começo eu fazia coisas absurdas, como uma vez, logo quando aconteceu, lembro que peguei a camiseta que eu estava usando no dia do acidente e preguei na parede como se fosse um quadro, bem do lado da minha cama. Foi pra eu poder sentir o cheiro de Carolina, que ainda estava naquela camiseta. Deixei pendurada ali por um bocado de tempo, e mesmo quando o cheiro já tinha saído, eu imaginava que ainda estivesse lá, pelo menos alguma coisa que restou do cheiro que meu nariz não pudesse mais sentir. O que importava é que estivesse lá. Inventava também outros pretextos, como o fato de ter sido a última camiseta que usei ao lado dela, ou saber que suas impressões digitais estivessem impregnadas no tecido, e várias outras coisas assim.
Já procurei outras mulheres, mas nenhuma tem o gosto igual. Algumas têm os lábios maiores, já outras, lábios menores. Umas têm peitos mais pontudos, mais suaves, com mamilos pequenos ou de qualquer outro jeito, mas a verdade é que nunca são iguais. Sempre falta algo. A última com quem saí, por exemplo, me decepcionou quando tirou os sapatos. Não tinha cheiro ruim nem nada, mas era o formato que era estranho. Carolina tinha o pé perfeito, de verdade mesmo, eu não conseguia enxergar nada de errado com o pé dela. Mas essas outras sempre têm alguma coisa que me incomoda.
Lembro que eu costumava contar tudo a ela, cada mísero detalhe dos meus dias. Mesmo que não tivesse nada de interessante, ela me escutava sempre. Eu também escutava quando ela contava dos seus dias, mas a diferença era que os dela eram realmente interessantes. Sabe, ela costumava ler muito, gostava muito de livros de amor, mas ela nunca lia os finais, nunca mesmo. Dizia que assim ela podia criar o final que quisesse, ou então fazer com que a história durasse para sempre, como uma história sem fim. Além disso, ela também dançava, e estava ensaiando para uma peça musical. Tentou convencer o autor da peça a não mostrar o final no dia da apresentação, mas não deu muito certo. Nem todo mundo iria entender o motivo. A verdade é que ninguém nunca entende nada, isso é o que acontece.
Um pouco antes da tragédia, a do acidente de carro, a gente tinha brigado e a última coisa que lhe disse foi “te odeio”. Quero me matar por ter dito isso. Quando finalmente me arrependi e liguei no celular pra pedir desculpas, ninguém atendeu. Então liguei em sua casa, e uma voz de choro me deu a notícia do acidente. Nunca mais vou poder pedir desculpas, nem falar que eu nunca a odiei, muito menos dizer que não existe ninguém no mundo que tenha o pé igual ao dela, e além disso, ela nunca soube do anel que eu havia comprado naquele dia. Iria pedir sua mão em casamento, mas não deu. O carro caiu numa ribanceira quando ela estava voltando pra sua casa, depois da briga que tivemos aqui. No final deu que o carro pegou fogo, e ela morreu assim.
Se nunca tivéssemos brigado, ela nunca teria ido embora, e não haveria nada disso. O que eu quero dizer, é que se algum dia me aparecer uma mulher tão perfeita quanto ela, o que eu estou começando a acreditar que é impossível, eu nunca vou brigar, nunca mesmo. Mesmo que eu esteja certo, vou ceder minha razão, assim ninguém vai cair na ribanceira, e quem sabe um dia alguém possa receber o anel que estou guardando há tanto tempo. Ainda espero.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A História de um Sonhador Incompleto

Sabe, já me acostumei com o jeito dele. O último dia que o vi sorrindo foi quando, bem, foi quando sua mãe morreu. É estranho alguém sorrir quando a mãe morre, mas ele realmente odiava sua mãe, e acho que foi porque ela o mandou pra droga de um colégio de freira, onde ele passou uns três ou quatro anos e logo depois foi expulso. Ele gritava com os professores, dava em cima das freiras e chamava o padre de bicha. Ele até chegou a engravidar uma freira uma vez, mas acho que Deus deu uma trégua pra eles e o feto caiu na água, quando ela estava sentada na privada. Essa freira era, de fato, eu mesma. E imagino que esse seja o principal motivo da gente ter sido expulso.
Logo depois de sair de lá, seu pai morreu. Ele não se importou muito não, porque odiava também seu pai, que não o dava atenção. Era um homem do exército e essas drogas todas, esses caras nunca têm tempo. Então ele fugiu de casa, e foi quando a gente resolveu morar junto. Arranjamos um emprego bem medíocre, mas pelo menos dava pra gente se manter.
Lembro que um dia ele apareceu em casa com um cachorro, daqueles bem pequenos, que ficam correndo e mijando pela casa toda. No fim ele o matou. Disse que o cachorro enchia o saco, e que não precisava de ninguém na casa além de mim. Eu tive que pegar o bichinho morto e enterrar lá no quintal. Mas nem me importei, não.
Às vezes a gente sai pra dar uma volta. Ele não é de sair muito, mas comigo ele gosta. Geralmente vamos pra algum lugar bem isolado, na beira de um lago ou qualquer coisa assim, onde ele costuma me contar as suas histórias. Ele disse que uma vez, quando ele era bem pequeno, uns sete ou oito anos, uma menininha da escola o convidou pra sua festinha de aniversário, que seria na casa dela. Depois de cortar o bolo, ele a chamou pra dentro de um armário, que era daqueles iguais aos dos Estados Unidos, que são grandes e embutidos na parede, enfim, foi isso que ele fez. Depois falou pra ela levantar o vestidinho, abaixar a calcinha, e o deixar passar a mão lá no lugarzinho dela. Pior de tudo é que ela deixou, e sem entender o que estavam fazendo, transaram dentro do armário. Mas eles nem sabiam o que era isso. Só fizeram, talvez, por puro instinto ou curiosidade infantil. Outra vez me contou como roubava dinheiro dos seus amiguinhos, que era pra comprar fitas de pornografia, charuto, ou qualquer coisa que fosse de gente grande. Na maioria das vezes era pra vender pelo triplo do preço para os mesmos amiguinhos dos quais ele havia roubado o dinheiro em primeiro lugar.
De qualquer forma, depois de um tempo na beira do lago a gente volta pra casa. Aprendi a ter o máximo de paciência com ele, porque gosto muito de sua companhia. Além do mais, tem dias que ele me abraça, diz que me ama, que sem mim ele não seria nada, e todas essas coisas assim. Ele não é assim por mal, não. Ele queria ser músico, poeta, ou escritor, mas por falta de sorte ou simples ironia, acabou por trabalhar na droga de uma loja de aspirador de pó. Vende algumas outras coisas lá também, mas o forte são os aspiradores de pó. Fica lá perto da Av. Paulista, o lugar onde ele trabalha. O que eu quero dizer, é que eu tenho esperança de que um dia ele seja finalmente quem ele quer. Ainda é cedo, e muito cedo. Um dia a gente chega lá, e quando a gente chegar, eu prometo contar como foi.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Romance de Partida


(Barulho de pedra batendo na janela)

Acorda, acorda! A gente tem que partir, já esqueceu? Vamos logo, antes que seu pai acorde! Se ele souber que estou aqui vai matar eu e você junto. Eu sei que já passa das três da manhã, mas tive que esperar todo mundo dormir pra poder sair de casa. Vamos! Levanta!

(Dois minutos se passam)

Isso! Até que enfim! Só isso de roupa já está bom, a gente arruma mais no caminho. Coloque naquela mala ali mesmo. Você tem algum dinheiro? Não? Tudo bem, eu acho que tenho uns trocados. Acho que a gente não está esquecendo nada. Vamos.

(Os dois saem da casa, e caminham em direção a lugar nenhum)

Vamos sair daqui e arranjar um canto pra gente. Ficar ali o resto da vida. Mas tem que ser num lugar tranquilo, porque gosto do barulho dos animais, dos insetos, e dessas drogas todas. Tudo bem que os insetos incomodam de vez em quando, mas a gente coloca aquelas redes contra insetos na porta, igual nos filmes americanos, e acho que resolve. O que você acha?
Quando eu chegar do trabalho eu te conto como foi meu dia, você me conta como foi o seu, e a gente faz alguma coisa pra comer. Nada tão complexo, só pra matar a fome mesmo, sabe? Nos finais de semana a gente pode ir passear no parque, igual fazem aqueles casais ridículos dos quais a gente costumava rir, mas acho que isso passa a ser uma coisa gostosa depois de um tempo, conforme a gente vai amadurecendo. Pelo menos eu estou começando a ficar com vontade de fazer isso.
Seria bom também a gente ser mais ridículo ainda. Comprar uma daquelas toalhas de mesa xadrez, fazer sanduíches e ir comer lá, passar a tarde inteira sentados na droga da grama. Parece ser bom. Com você tudo é bom.
Na hora de dormir a gente fala boa noite um pro outro, mas você dorme primeiro, eu não gosto de dormir antes que você. Gosto de ficar te vendo dormir. É a mesma coisa de assistir TV desligada, mas mesmo assim eu gosto.
Bem mais pra frente, quando a gente já estiver ficando um pouco velho, a gente faz um filho. Sempre quis ter um filho, ou filha, tanto faz. De qualquer jeito eles vão crescer e abandonar a gente. Mas não gosto de pensar nessa parte. Gosto da parte antes disso acontecer, e antes daquela rebeldia toda, dos doze anos pra baixo.
Quando passam dessa idade, eles conhecem alguém, se apaixonam perdidamente, fogem de casa, e fazem exatamente o que a gente está fazendo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Femme Fatale

Eu a vi logo quando entrei naquele restaurante. Sabe, a decoração era meio duvidável, me lembrava as boates da Rua Augusta ou coisa parecida, não sei bem te explicar. Só sei que eu a vi ali, sentada, fumando a droga de um cigarro e me olhando com aquela cara de pá furada. Ela era bonita, bonita de verdade mesmo, era só sua expressão naquele momento que estava meio estranha, talvez fosse o tédio que ela estava sentindo ao lado daquele executivo metido a besta. Mas nem dei importância. Reservei minha mesa e fiz o pedido para o garçom. Até onde eu lembro pedi uma dose de Johnnie Walker, e mais alguma coisa que realmente não importa.
Como eu estava dizendo, eu estava sozinho, e da minha mesa não conseguia enxergar onde ela estava. Mas passou apenas cinco minutos e eu a vi, ou melhor, senti um vento na nuca, que me fez deduzir que fosse ela passando por mim para usar o toalete, que ficava próximo à minha mesa. Aliás, eu sabia que o toalete era apenas um pretexto para passar por mim. De qualquer forma, foi em minha perna onde ela deixou cair aquele pequeno papel, com seu nome e telefone escritos em letra de mão. Não houve palavras, nem olhares, nem nada. Só a vi andando para o lado de lá e sumindo por entre as mesas e pilares. Eu continuei ali, segurando aquele papel, sem entender nada.
O nome era, bem, não me lembro qual era o seu nome. Sei que era daqueles bonitos, que faz a gente ficar em dúvida se é o nome real ou se a pessoa inventou para si mesmo. O que eu quero dizer, é o que você já deve estar imaginando: Ela era uma prostituta. Liguei para ela uma semana depois, sem saber de nada, e a convidei pra sair. Só de farra sugeri aquele mesmo restaurante e ela topou.
Parecia outra pessoa. Aquele vestido curtíssimo do primeiro dia se transformou em um vestido de mulher séria, daqueles que chamam a atenção pela beleza, e não pelo fato de deixarem as roupas de baixo quase aparecendo. Passamos a noite inteira juntos, e a levei de volta pra casa depois.
Saímos várias outras vezes, para lugares diversos, e cada dia ela era de um jeito. Um dia se vestia como uma puta, outro como uma mulher casada, outro como uma estudiosa, daquelas que usam casaco de lã e essas drogas todas. O que eu quero dizer é que sua personalidade mudava conforme a roupa que vestia. Havia dias em que ela só falava de política, filosofia e arte. Em outros contava velhas histórias, de quando ela era mais nova e tudo mais. Em outros dias, para variar, só falava de sexo.
Isso se repetiu por todo o tempo. Tive que me acostumar com suas infinitas personalidades, e aos poucos fui aprendendo como ela funcionava. Até na cama isso mudava. No começo achei que ela tivesse alguma obsessão por roupas, e pensei que, se eu as tirasse, ela seria a pessoa que realmente é. Mas não, era coisa de dia. Com roupa ou sem roupa, ela não mudava. Cada dia ela era diferente, e é aí onde eu quero chegar.
Foi numa sexta de noite, estava chovendo e eu combinei de pegá-la em sua casa, coisa que eu nunca havia feito antes. Foi um choque, de verdade. Quis me morder, chorar, me matar, gritar, juro que eu mesmo não sabia o que eu queria naquela hora. Só sei que elas saíram pela porta da frente. Sim, ELAS, pois eram três. Três mulheres exatamente iguais, a não ser pelas roupas. Uma era prostituta, outra trabalhava em uma empresa grande no centro da cidade, e outra era dona de casa, porém era muito bem informada e lia muito. Falaram finalmente que eram trigêmeas, e que fizeram isso pois queriam passar por uma nova experiência. Eu fui o cobaia nessa droga toda. Entrei de volta no carro, e fui embora sem dizer uma só palavra. Nunca mais as vi. Só para completar, aquele executivo metido a besta no primeiro dia no restaurante era, de fato, o pai delas.

domingo, 12 de abril de 2009

Idéia para um livro

Um homem superdotado acha que todas as outras pessoas do mundo são loucas, e ele o único normal.
Sendo o único diferente no mundo inteiro, ele é perseguido por várias pessoas, que conseguem capturá-lo e logo depois jogá-lo num lugar semelhante a um hospício, de onde ele consegue fugir facilmente.
Ao voltar pras ruas começa a se aproveitar de sua mentalidade avantajada e cria um plano perfeito. Engana a todos, fica milionário de forma relativamente fácil e percebe então que tudo aquilo é inútil quando se vive completamente sozinho.
No final da história, uma pessoa o encontra jogado no chão de um galpão, comendo furiosamente todas as notas de sua fortuna, se cortando com um pedaço de vidro e dizendo frases completamente sem sentido. Conlui-se então que louco era ele mesmo, desde o início.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Paraíso da Ilusão

É sobre o homem que descobriu o paraíso:

Tudo era bonito. O lugar tinha aquele clima branco, luminoso e sereno, misturado com um cheiro impossível de se descrever, mas que o agradava quase absolutamente. Ele olhava pro lado, e qualquer coisa que ele quisesse simplesmente aparecia. Bastava querer qualquer coisa, que aparecia bem na sua frente.
Um dia ele quis uma mulher, e assim teve uma mulher. Ela era perfeita, impecável, em todos os sentidos. Nos primeiros tempos era uma maravilha, mas depois ele já não aguentava mais aquela mulher. Ela nunca reclamava, concordava com tudo que ele dizia, sabia de tudo e não dava motivos para nenhum tipo de descontentamento. Ele passou a odiá-la por ser perfeita, e se desfez dela.
Sendo assim, entediado e se sentindo sozinho, ele resolveu que queria amigos, daqueles bem íntimos que o ajudassem naquilo que ele precisasse, e então apareceram-lhe muitas pessoas maravilhosas. Tão maravilhosas que depois de um tempo o homem não precisava fazer mais nada, pois para tudo o que ele quisesse, era só pedir aos amigos que eles faziam.
Mas novamente, tudo ficou vazio. Os amigos tornaram-se pessoas desagradáveis. O homem não suportava tanta simpatia assim, e além do mais tinha que fazer alguma coisa de vez em quando. Se desfez também dos seus amigos perfeitos.
Passou-se muito tempo, e ele quis e se desfez de muita coisa, até que um dia já não tinha mais o que querer. Viu então que a perfeição era um erro grave, e de uma hora pra outra quis uma mulher que reclamasse, que falasse dos seus defeitos e o ajudasse a melhorar. Quis também apenas alguns amigos íntimos, e mais outros infinitos amigos casuais, que lhes serviriam para passar o tempo e se distrair, mas que tivessem também suas próprias vidas. Resolveu sair da perfeita casa onde morava e se mudar para um lugar mais simples, com casas normais e pessoas normais. Desejou que naquele lugar passasse a existir milhares de pessoas que ele não conhecesse, simplesmente para poder sentir o sublime prazer da novidade e da surpresa.
Desejou filhos, mas não filhos perfeitos, e sim filhos que fossem errantes, para que ele, junto com sua mulher, pudesse ensiná-los e educá-los.
Descobriu finalmente o paraíso. Viveu o resto de sua vida ali, naquele lugar onde ele podia ter tudo que quisesse, desde que conquistasse. Podia também mudar, conhecer novas pessoas, ter novas experiências, realizar algum sonho, ter também decepções, mágoas e desgostos, que servem, acima de tudo, para deixarem o mundo como um verdadeiro paraíso.

Sim, é estranho, mas a perfeição é o maior defeito que existe.